José
1
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
2
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
3
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
4
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
5
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
6
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”
(Carlos Drummond de Andrade)
Análise - parte 1
- por Oriza Martins
O poema "José", de Carlos Drummond de Andrade, foi publicado em 1942.
Trata-se de um poema modernista, com liberdade de rimas,
linguagem coloquial, cenários da vida cotidiana, uso de regionalismos e é farto
em linguagem figurada para exprimir temas da situação-limite em que se
encontra eu-lírico :da solidão, do abandono, da impossibilidade, da impotência, do
desencanto, da angústia, uma luta travada interiormente contra a visão
pessimista do porvir, ou seja, um verdadeiro conflito existencial.
O próprio Drummond, em cartas e entrevistas, nos fala sobre essa
crise existencial.
Em uma entrevista a sua filha, o poeta
admitiu que "José é um poema de explosão, é o poema de um suicida que não se
suicidou".
Em uma carta a um amigo historiador , mineiro como o
poeta,
Drummond explica que escreveu o poema José num
"momento de crise existencial em que queria fugir de tudo e de todos e não
voltar fisicamente para Minas Gerais".
Para entendermos melhor o poema José, é importante uma reflexão
sobre o contexto em que a obra foi escrita, é importante conhecermos a época em que o poema foi lançado: ano de 1942.
Em 1942, a Segunda Guerra Mundial encontrava-se no auge, com
amplo poderio das forças do Eixo, comandadas
pelo tripé: Alemanha nazista / Itália fascista / Japão imperialista.
A batalha de Stalingrado - cuja vitória soviética significou a mudança do pêndulo em favor
dos Aliados no fronte leste -, só ocorreria no final do ano de 1942; no fronte
do Pacífico, os EUA que haviam acabado de entrar na guerra (dezembro/1941),
ainda tentavam se organizar para a luta de fato.
A primeira vitória americana
sobre os japoneses, em Midway, aconteceria somente em junho de 1942, como um
sinal de esperança de que os Aliados poderiam vencer o conflito, mas num futuro
imprevisível, distante.
Ou seja: os rumos da guerra ainda estavam indefinidos, o
mundo mergulhado na incerteza, no prenúncio do caos, vislumbrando um cenário que
poderia vir a se tornar catastrófico para a humanidade.
Isso tudo acontecia no contexto internacional, e nesse contexto,
surge o poema "José", de Carlos Drummond de Andrade, com um agravante: como se
não bastasse tudo o que ocorria no cenário internacional, aqui no Brasil o país
era governado por uma ditadura - a ditadura Vargas, que flertava com o nazismo,
que vacilou muito e quase levou o país
a lutar no lado errado da guerra.
E Drummond, como se sabe, era um homem de
ideais, progressista, de esquerda. Então, imaginem como se sentia o poeta vivenciando aqueles
tempos.
Diante de um cenário desses, tínhamos o mundo em desencanto, o Brasil em
desencanto, e o homem em desencanto.
Esta era a pergunta cotidiana que todos os que ansiavam pela paz se faziam: E
agora? E agora, José? Para onde caminhas? Para onde caminha a humanidade?
E o eu-poético, o eu-lírico, diante das contingências históricas e de suas
próprias inquietações pessoais, questionava o outro e se questionava: E agora,
José? E questionava o leitor: E agora, você?
Então, uma interpretação possível para o personagem "José" é a de que ele
significa não apenas o próprio poeta, mas cada um de nós, ou todos nós, em conjunto, ou seja, toda a humanidade,
valendo-se o eu-lírico, neste caso, da linguagem figurada - a metonímia, a parte pelo todo: o indivíduo
pelo coletivo, o ser individual pelo ser universal, a unidade pela diversidade.
Quem é, então, o personagem José? O nome escolhido - José - o mais utilizado da
língua portuguesa - aplica-se, no poema, ao ser humano comum. Ele representa
a unidade na diversidade: um homem (unidade) significando as várias
possibilidades de homens, gente que ama, que zomba, que faz versos,
que protesta, que sofre, que luta (diversidade).
1a. estrofe:
"você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?"
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?"
E como se caracterizaria o poema José? "José" é um poema lírico? É poema de cunho social?
José tem características líricas? Sim, são evidentes.
José é um poema de expressão social? Também, sim.
Sim, é lírico no sentido de que apresenta referências líricas - aspectos
subjetivos, que remetem o eu-poético, o eu-lírico, ao próprio poeta Drummond em
suas vivências e angústias.
É um poema social enquanto veicula aspectos que, embora frutos de
um contexto histórico, remetem ao homem no sentido
universal, com suas preocupações cotidianas, sua luta pela sobrevivência,
as necessidades emocionais e inquietações metafísicas.
Vejamos então como se apresentam os
Aspectos líricos no poema:
- José faz versos
José, além das características comuns a todos os humanos, ama, protesta, faz
versos, tem uma biblioteca, sugerindo que a abordagem dessa personagem inclui o
poeta.
- Minas Gerais está presente no poema:
José parece ser mineiro, pois há referências a Minas Gerais no poema,
como sugere a 4a. estrofe:
"quer ir para Minas,
Minas não há mais."
Minas não há mais."
Sabe-se que Drummond era mineiro da cidade de Itabira. E o próprio
Drummond fala sobre o poema e o significado de ser mineiro para ele, numa entrevista a
sua filha. Vamos ver e ouvir a gravação pelo poeta (acessando o vídeo):
"O que é José, por exemplo, José é um poema de explosão, é o poema de um suicida que não se suicidou e que conseguiu... através de José, fui reprovado [...] Afonso Arinos achou José um poema errado, porque eu falava que Minas não havia mais... Minas não havia mais para mim e naquele momento; Minas há em mim, de uma maneira... assim... imponderável mas é profunda, porque sou mineiro e se há uma coisa na vida é que eu sou é mineiro, não sou brasileiro, sou mineiro. Aquele era um momento de desespero porque eu não tinha nada, não tinha Minas Gerais, não tinha nem um apoio, nem um cavalo pra fugir, e essa imagem do cavalo é natural numa pessoa que era filha de fazendeiros e para a qual a ideia de ter um cavalo arriado à sua porta é muito importante, porque o cavalo dá uma ideia de liberdade, de uma ideia de expansão, que eu não tinha em mim, aliás, eu [...] andar a cavalo; então, o poema valeu para mim como exorcismo; agora, depois, então, eu já não sinto a necessidade de exorcismo."
Segundo o próprio Drummond, portanto, o poema reflete um momento
em que o
poeta
passava por uma situação-limite, uma crise existencial.
Outra referência a Minas Gerais é a lavra de ouro (3a. estrofe) - que,
como figura de linguagem, tanto pode significar riqueza,
bens materiais como o próprio trabalho, o ofício ou emprego de José, pois uma
lavra, em Minas, é um pedaço de terra de onde o minerador tenta retirar seu sustento.
Ainda sobre sua vivência no interior mineiro: o poeta
evoca, na estrofe final os regionalismos do interior de Minas - bicho do mato, o hábito de se deixar
um cavalo arreado à porta de casa para saídas de emergência.
- Outra característica lírica é a referência à utopia (2a.
estrofe). Quando fala em utopia ("não veio a utopia") - Drummond nos dá outra mostra
de seu lirismo, pois ele nutria esperança por ideais progressistas, de uma
esquerda utópica, mas, na prática, na existência, mostrou-se decepcionado com o partido comunista
com o qual ele mantinha relações.
- A referência à teogonia (6a. estrofe) também é um indício
do subjetivismo do poeta. Teogonia é um conceito ligado à criação dos deuses.
Drummond tinha uma relação instigante com a ideia de Deus. Embora tivesse sido
criado na religião católica, para ser - como o poeta mesmo dizia -, "temente a Deus", ele se
questionava: Se Deus criou o mundo, quem criou Deus? Esse é um
questionamento existencialista.
Para o existencialista, as soluções de seus
conflitos resultam de suas próprias lutas, não de soluções mágicas, advindas de
poderes divinos. No existencialismo, a existência precede a essência; o concreto
precede o abstrato, não é um deus que gera o homem, mas o homem que gera seus
deuses. No poema, não houve teogonia para José, nenhuma geração de divindades
para socorrê-lo, nenhuma intervenção mística no seu momento de desespero, como
seria
comum entre homens de fé - que inclusive não era exatamente esse o perfil de Drummond, pois
o poeta
preferia definir-se como agnóstico.
Retomando, então, as características gerais do poema:
"José" é um poema modernista composto por seis estrofes com
número variado de versos, em forma de redondilha menor, de cinco sílabas ou
pentassílabos, versos brancos, sem preocupação
com rimas. A redondilha menor agiliza a leitura, confere ao poema uma atmosfera
de agitação, de turbilhão, de pressa, de urgência para a solução da
situação-limite em que se encontra o eu-lírico.
A pergunta-chave (E agora?), repetida várias vezes, inicia o
poema e já se tornou um refrão no imaginário do leitor. Ela aparece nas quatro
primeiras estrofes quando o eu-lírico se dá conta de sua carência, de sua
solidão, diagnosticando a situação e está "caindo na real", como se diz
popularmente.
A partir da terceira estrofe o eu-lírico inicia o processo de busca da resposta à indagação
(E agora?), quando esta é
colocada pela última vez no poema.
Nas duas últimas estrofes já não acontece
mais a pergunta porque o eu-lírico encontra-se, então, numa busca frenética para encontrar uma
resposta à sua pergunta, uma saída aquela situação-limite.
Ficamos, então, por aqui com a primeira parte da análise do poema, onde foram elencadas as características gerais.
Na segunda parte, vamos proceder à análise de cada
estrofe e verificaremos se o eu-lírico conseguiu ou não uma resposta à sua
indagação: E agora, José?
- Oriza Martins - portal Galera Dez
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- Oriza Martins - portal Galera Dez
Continue navegando e aprendendo!
Estava pesquisando sobre esse poema, pois terei uma prova escolar baseado nele, e felizmente encontrei esse site. Depois de algumas leituras e depois de assistir o vídeo, conseguir aprender bastante sobre o grande significado do poema. Obrigada!
ResponderExcluirQue propostad ele apresenta??
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