SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS, PARA A CAPELA REAL - Padre Vieira

SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS,
PARA A CAPELA REAL

QUE SE NÃO PREGOU POR ENFERMIDADE DO AUTOR


Pulvis es, et in pulverem reverteris[1].


§I

A sentença de morte que a Igreja hoje solenemente não só no-la repete aos ouvidos com a voz, mas no-la escreve na testa com a cinza. Assunto do sermão: o pó que somos é a vida, o pó que havemos de ser é a morte: o maior bem da vida é a morte, o maior mal da morte é a vida.

Esta é a sentença da morte fulminada contra Adão e todos seus descendentes, a qual se tem executado em todos quantos até agora viveram, e se há de executar em nós, sem apelação de inocência, sem respeito de estado, sem exceção de pessoa. A Igreja solenemente hoje, não só no-la repete aos ouvidos com a voz, mas no-la escreve na testa com a cinza, como se dissera a seus filhos uma piedosa mãe: – Filhos, ouvi e lede a sentença de vosso pai, e sabei que sois pó, e vos haveis de converter em pó: –Pulvis es, et in pulverem reverteris (Gên. 3, 19). – Outras vezes, e por vários modos, neste mesmo dia, e sobre estas mesmas palavras, tenho comparado e combinado entre si o pó que somos com o pó que havemos de ser, e, posto que me não arrependo do que então disse, o que hoje determino dizer não é menos qualificada verdade nem menos importante desengano. O pó que somos é o de que se compõem os vivos; o pó que havemos de ser é o em que se resolvem os mortos. E sendo estes dois extremos tão opostos como o ser e não-ser, não é muito que os efeitos e afetos que produzem em nós sejam também muito diversos: por isso amamos a vida e tememos a morte. Mas porque eu, depois de larga experiência, tenho conhecido que estes dois efeitos no nosso entendimento, e estes dois afetos na nossa vontade andam trocados, o meu intento é pô-los hoje em seu lugar. O amor está fora do seu lugar, porque está na vida; o temor também está fora do seu lugar, porque está na morte: o que farei, pois, será destroçar estes lugares, com tal evidência que fiquemos entendendo todos que a morte, que tanto tememos, deve ser amada, e a vida, que tanto amamos, deve ser a temida. E por quê? Em um e outro pó temos a razão. Porque o maior bem do pó que somos é o pó que havemos de ser, e o maior mal do pó que havemos de ser é o pó que somos. Mais claro. O pó que somos é a vida, o pó que havemos de ser é a morte; e o maior bem da vida é a morte, o maior mal da morte é a vida. Isto é o que hei de provar. Deus nos assista com sua graça para o persuadir.



§II

Que juízo fez Salomão, com toda sua sabedoria, e depois de todas as suas experiências, entre a morte e a vida? O que diz a eterna sabedoria de Cristo? Se Cristo se alegra com a morte de Lázaro, por que se entristece com a sua ressurreição? A quem esteve mal a ressurreição de Lázaro?

Que o maior bem do pó que somos seja o pó que havemos de ser, que o maior bem da vida, que tão enganosamente amamos, seja a morte, que enganadamente tememos, só quem mais que todos experimentou os bens da mesma vida o pode melhor que todos testemunhar. Quem mais que todos quis, soube e pode experimentar os bens desta vida, e com efeito fez de todos eles a mais universal e exata experiência foi Salomão. E que juízo fez Salomão, com toda a sua sabedoria e depois de todas as suas experiências, entre a morte e a vida? Ele mesmo o declarou, e com palavras tão expressas que não hão mister comento nem admitem dúvida: Laudavi mugis mortuos quarn viventes (EcI. 4, 2): Lançando os olhos por todoeste mundo, e considerando bem a vida dos que vivem sobre a terra e a morte dos que jazem debaixo dela, resolvi – diz Salomão – que muito melhor é a sorte dos mortos que a dos vivos: Laudavi mugis mortuos quam viventes. –Notai a energia daquela palavra laudavi. Como se dissera o mais sábio de todos os homens: Se com toda a minha eloqüência houvera de orar pelos mortos e pelos vivos, aos mortos havia de dar os parabéns, e fazer um largo panegírico de suas felicidades, e aos vivos havia de dar os pêsames, e fazer uma oração verdadeiramente fúnebre e triste, em que lamentasse suas misérias e desgraças. Isto disse Salomão, com cuja autoridade nenhuma outra humana pode competir; só foi maior que ela a que juntamente é humana e divina, a da eterna sabedoria de Cristo: Et ecce plus quam Salomon hic[2]! E por que também nos não falte esta, ouçamos ao mesmo Cristo, e vejamos o que disse e o que fez em semelhante caso.

Morreu Lázaro e ressuscitou Lázaro. Ponhamos pois a Lázaro ressuscitado entre os vivos, e a Lázaro defunto entre os mortos, e notemos no supremo Senhor da vida e da morte como lhe lamenta a morte e como lhe festeja a vida. Quando Cristo declarou aos discípulos que Lázaro era morto, disse: Lazarus mortuus est, et gaudeo (Jo. 11 , 14 s): É morto Lázaro, e folgo. – Partiu dali a ressuscitá-lo o mesmo Senhor, e chegando à sepultura, não só chorou: Lacrymatus est (ibid. 35) – mas mostrou que se lhe angustiava o coração: Rursum fremens in semetipso[3]. – Repara S. Pedro Crisólogo no encontro verdadeiramente admirável destes dois afetos, um de alegria e gosto na morte, outro de penas e lágrimas na ressurreição do mesmo Lázaro, e diz assim elegantemente: Certe ipse qui dixerat: Lazarus mortuus est, et gaudeo, de quo gaudet mortuo, ipsum, cum resuscitat, tunc lamentatur; qui cum amittit, non flet, cum recipit, tunc deplorat; tunc fundit mortales lacrymas, vitae spiritum cum refundit: Notável caso – diz Crisólogo – que o mesmo Cristo sobre o mesmo Lázaro, quando diz que é morto se alegre, e quando o quer ressuscitar o lamente! Notável caso, que quando perde o amigo não chore, e que chore quando o há de ter outra vez consigo! Notável caso que quando lhe há de infundir o espírito de vida se lhe aflija e angustie o coração, e que o haja de receber vivo com as mesmas lágrimas com que nós nos despedimos dos mortos! – Por isso lhe chama lágrimas mortais: Tunc fundit mortales lacrymas, vitae spiritum cum refundit. – Pois, se Cristo se alegra com a morte de Lázaro, por que se entristece com a sua ressurreição, e por que chora quando lhe há de dar a vida? Eu não nego que quando Cristo chora por uma causa se pode alegrar por outras. Isso significou o mesmo Senhor quando disse: Gaudeo propter vos[4]. – Mas, ainda que tivesse uma causa e muitas para se alegrar com a morte de Lázaro, que causa ou que razão pode ter para chorar a sua ressurreição e a sua vida? Lacrymatus est non quod mortuus erat, sed quod revocare illum oportebat ad tolerandas rursus hujus vitae miserias[5] – diz Ruperto, e o mesmo tinha dito antes dele Isidoro Pelusiota. Mas eu tenho melhor autor que ambos, que é o Concílio Toledano terceiro, o qual dá a mesma razão por estas palavras: Christus noii ploravit Lazarum mortuum, sed ad hujus vitae aerumas ploravit resuscitandum[6]: Chora Cristo a Lázaro quando o há de ressuscitar, não o chorando morto, porque, estando já livre dos trabalhos, das misérias e dos perigos da vida, por meio da morte, agora, por meio da ressurreição, o tornava outra vez a meter nos mesmos trabalhos, nas mesmas misérias e nos mesmos perigos. A todos esteve bem a ressurreição de Lázaro, e só ao mesmo Lázaro esteve mal. Esteve bem a Deus – se assim é lícito falar– porque foi para sua glória; esteve bem aos discípulos, porque os confirmou na fé; esteve bem aos de Jerusalém, porque muitos se converteram; esteve bem às irmãs, porque recobraram o amparo e arrimo de sua casa; esteve bem ao mesmo Cristo, porque então manifestou mais claramente os poderes da sua divindade, e só a Lázaro esteve mal, porque a ressurreição o tirou do descanso para o trabalho, do esquecimento para a memória, da quietação para os cuidados, da paz para a guerra, do porto para a tempestade, do sagrado da inveja para a campanha do ódio, da clausura do silêncio para a soltura das línguas, do estado da invisibilidade para o de ver e ser visto, de entre os ossos dos pais e avós para entre os dentes dos êmulos e inimigos, enfim, da liberdade em que o tinha posto a morte, para o cativeiro e cativeiros da vida.



§ III

O exemplo dos bárbaros passianos celebrando com festas a morte dos filhos, e os louvores dos romanos aos suicidas. Os suicídios de Saul, de Aquitofel e de Sansão. S. Paulo, os patriarcas da lei escrita e o desejo da morte.

Persuadidos os homens à verdade deste desengano, não é muito que a morte lhes começasse a parecer menos feia que a vida, antes que a vida lhes parecesse feia, e a morte formosa. Os passianos, e outras nações, que barbaramente se chamam bárbaras, choravam e pranteavam os nascimentos dos filhos, e celebravam com festas as suas mortes, porque entendiam que nascendo entravam aos trabalhos, e morrendo passavam ao descanso. E certamente que as lágrimas dos nascimentos os mesmos nascidos, sem mais ensino que o da natureza, as aprovam e ajudam com as suas, e as festas com que se celebravam as mortes também os mortos, pela experiência do seu descanso, se pudessem falar, as louvariam. Por isso Samuel, obrigado a falar com Saul depois de morto e sepultado, o que disse foi: Quare inquietasti me (1 Rs. 28, 15)? Por que me inquietaste? – Muitos filósofos, e particularmente os estóicos, cuja seita, pela preferência da virtude, se avizinhava mais ao lume da razão, não só davam licença aos seus professores para que antepusessem a morte à vida, mas aos que em caso de honra tomavam por suas mãos a mesma morte – a que chamavam porta da liberdade – os introduziam por ela à imortalidade da glória. Assim o fez aquele homem maior que todos os romanos, Catão, cujo juízo e autoridade, na opinião da mesma Roma, se punha em balança com a dos deuses, como soberbissimamente cantou dele Lucano, na demanda imperial de César com Pompeu:

Magno se judice quisque tuetur,
Victrix causa diis placuit, pars vicia Catoni[7]

E se alguém me replicar que estes homens eram gentios, eu lhe perguntarei primeiramente se era gentio Sansão, ou Saul, ou Aquitofel, e que fizeram em semelhantes casos? Sansão não duvidou matar-se a si mesmo, por se vingar, como ele disse, dos filisteus, pela injúria que lhe tinham feito em lhe arrancar os olhos. Saul, por não vir a mãos de seus inimigos, vencido em uma batalha, mandou a seu pajem da lança que o matasse, e porque não foi obedecido, ele, pondo a ponta da espada no peito, com todo o peso do corpo se atravessou nela. Aquitofel, que era o Catão dos hebreus, e cujos conselhos, por testemunho da Escritura Sagrada, eram como os oráculos do mesmo Deus, porque Absalão, cujas partes seguira, os não quis tomar, tornou ele por conselho antecipar por suas próprias mãos a morte, prevendo como sábio, que não podia deixar de ser vencedor Davi, a quem a tinha bem merecido. Mas, porque ainda aqui se pode dizer que as mortes de Aquitofel e Saul foram condenadas, e as razões que defendem haver sido lícita a de Sansão podem parecer duvidosas, ouçamos o que nos casos de antepor a morte à vida desejaram e pediram a Deus os mais abalizados santos, e canonizados por ele.

Moisés, governador supremo do povo de Deus, e o que mais é, com uma vara milagrosa e onipotente na mão, pediu ao mesmo Deus que o livrasse daquele peso, e se não, que o matasse antes, e lhe daria muitas graças por tamanha mercê: Sin aliter tibi videtur; obsecro ut interficias me, et inveniam gratiam in oculis tuis[8]. – Elias, fugindo à perseguição dá rainha Jesabel, lançado ao pé de uma árvore chamou pela morte: Petivit animae suae ut moreretur[9]– e disse a Deus: Basta já o vivido, Senhor, tirai-me a vida, pois não sou melhor que Abraão, Isac e Jacó, os quais descansam na sepultura: Sufficit mihi, Domine, tolle animam meara: negue enim meliorsum quam palres mei[10]. – Jó, o maior exemplo da paciência e constância, de tal modo se resolveu a querer antes morrer que viver, que, considerando todos os gêneros de morte possíveis, ainda aquela afrontosa e infame, que se dá aos facinorosos mais vis, tinha por melhor que a vida: Quamobrem suspendium elegit anima mea, et morrem ossa mea[11]. – Por isso, quando disse: Parte mihi – não foi pedir a Deus perdão dos pecados, senão que o deixasse morrer: Nequaquam ultrajam vivam, parce mihi[12]. – Estes eram os ais que, saindo do valente peito de Davi, o obrigavam a bradar, não porque se lhe estreitasse a vida, mas porque se lhe estendiam e alongavam os termos dela: Heu mihi, guia incolatus meus prolongatus est[13]! – E para que em um coro tão sublime nos não falte uma voz do terceiro céu, ouçamos a São Paulo: Infelix ego honro, quis me liberabit de corpore mortis hujus (Rom. 7, 24)? Miserável de mim, homem infeliz, quem me livrará já deste corpo mortal? – Em suma, que os maiores homens do mundo, em todos os estados do gênero humano, ou com fé, ou sem fé, ou na lei da natureza, ou na escrita, ou na da graça, sempre desejaram mais a morte do que estimaram a vida, e sempre em suas aflições e trabalhos apelaram do pó que somos sobre a terra para o pó que havemos de ser na sepultura.



§ IV

A distinção dos que dizem que é melhor a morte que a vida em respeito somente dos miseráveis e não dos infelizes. Se Elias fugia de Jesabel por temor da morte, por que deseja e pede a morte no mesmo tempo? As queixas de Sirac contra a morte e as queixas de Jó contra a vida. A morte, medo dos ricos e desejo dos pobres. O que diz Sêneca, o trágico, por boca do tirano Lico? Por que não caíram mortos Adão e Eva ao pé da mesma árvore onde comeram o fruto proibido, tanto que quebraram a lei?

De tudo o dito até aqui se segue que melhor é a morte que a vida, e que o maior bem da vida é a morte. Mas contra esta segunda parte, que é a primeira do meu assunto, inventou o amor da vida uma distinção fundada no que ela mais aborrece, que são as misérias, e no que mais estima, que são as felicidades. Fazendo, pois, uma grande diferença entre os miseráveis e os felizes, dizem os defensores da vida que para os miseráveis é maior bem a morte mas para os felizes não. E verdadeiramente este ditame parece da própria natureza, porque, consideradas a vida e a morte, cada uma por si só e em si mesma, a vida naturalmente é mais amável que a morte; acompanhada, porém, dos trabalhos, das misérias e das aflições que ela traz consigo, não há dúvida que muito melhor e mais para apetecer é a morte que a vida. Em todos os exemplos que acabamos de referir se vê clara. mente esta verdade, mas em nenhum com mais particular energia e reparo que no de Elias. Quando Elias desejou à morte, e a pediu a Deus, foi quando ia fugindo de Jesabel. E por que fugia Elias de Jesabel? Por temor da morte. Pois, se fugia por temor da morte, por que deseja e pede a morte no mesmo tempo? Porque então acabou de conhecer quanto melhor é a morte que a vida. Antes desta experiência, pela apreensão natural de todos os que vivemos, parecia-lhe a Elias que melhor era a vida que a morte; mas, depois que começou a subir montes e descer vales, de dia escondido nas grutas, de noite caminhando pelos horrores das sombras e dos desertos, figurando-se-lhe a cada penedo um homem armado e a cada rugir do vento uma fera, sem, outro comer nem beber mais que as raízes das ervas e os orvalhos do céu, cego sem guia, e solitário sem companhia – porque até um criadinho que levava consigo o despediu, por se não fiar dele – tudo miséria, tudo temor, tudo desconfiança, sem luz ou esperança de remédio, ou donde pudesse vir, no meio destas angústias, considerando o miserável profeta – noutras ocasiões tão animoso – quão trabalhosa e cara de sustentar lhe era a mesma vida duvidosa e incerta, pela qual tanto padecia, então acabou de conhecer quanto melhor lhe era o morrer que o viver, e por isso, despedindo-se da vida, pedia a morte: Tolle animam meam.

Estes são aqueles dois afetos ou aquelas duas queixas tão encontradas e tão concordes, uma de Sirac contra a morte, e outra de Jó contra a vida. Sirac diz: O mors, quam amara est memória tua homini pacem habenti (Eclo. 41, I )! Ó morte, quão amarga é a tua memória para o homem que vive com paz e descanso! – Não diz que para todos, senão para o que vive em paz e descanso, porque para o que vive em paz e descanso é amarga, para o que vive em trabalho e miséria é doce. E Jó dizia: Quare misero data est lux, et vila his qui in amaritudine sunt? Qui expectant mor-tem, et non venit, gaudentque vehementer cum invenerint sepulchrum (Jó 3, 20 ss)? Para que se dá a luz ao miserável, e a vida aos tristes, que esperam pela morte, a qual lhes tarda, e não têm maior alegria que quando acham a sepultura? – Também não diz que a morte tarda a todos, nem que todos se alegram com a sepultura, senão só os miseráveis e tristes, porque, assim como a morte e a sepultura para os contentes da vida é o seu maior temor, assim para os descontentes dela, e miseráveis, é o maior desejo. Por isso aquele filósofo, que refere Laércio, chamado Secundo, perguntadopelo imperador Adriano que era a morte, respondeu que era o medo dos ricos e o desejo dos pobres: Pavor divitum, desiderium pauperum[14]. – Melhor ainda, e mais nervosamente o disse Sêneca, o Trágico, por boca de Lico. Era Lico um famosíssimo tirano, o qual, na ausência de Hércules, matou a Creonte, rei legítimo de Tebas, e se lhe apoderou do reino. Este, pois, como tão grande mestre da tirania, dizia que quem matava à todos não sabia ser tirano: Qui morte cunctos luere supplicium jubet, nescit tyrannus esse. –Pois, que havia de fazer um tirano, para ser verdadeiramente tirano e cruel? Diz que havia de dar a morte a uns e a vida a outros, conforme a fortuna de cada um: aos felizes a morte, aos miseráveis a vida–Miserum vita perire, felicem jube: Ao feliz mandai que morra, ao miserável que viva – porque tanta pena é condenar o feliz à morte como o miserável à vida.

E para que uma doutrina tão conforme à comum estimação humana não fique profanada no nome e no autor, troquemos o nome de tirania no de justiça, e passemo-la do rei mais tirano ao Juiz mais reto. Caso é, assim como o maior do mundo, o mais admirável que, pondo Deus lei a Adão que, comendo da árvore vedada, morreria, comesse Eva e comesse o mesmo Adão, e não morressem. A observância das primeiras leis, e a execução dos primeiros castigos são os que fazem exemplo: faltando este, perde-se o respeito às leis e o temor aos castigos. Essa foi a razão da severidade com que São Pedro, aos primeiros delinqüentes da primitiva Igreja, Ananias e Safira, os fez cair de repente mortos a seus pés. Pois, por que não caíram também mortos Adão e Eva ao pé da mesma árvore onde comeram, tanto que quebraram a lei? Por isso mesmo: porque os quis Deus castigar. Para Deus castigar a Adão e Eva foi necessário que lhes comutasse a morte em vida, e o paraíso em desterro, porque só desta maneira se podia ajustar a ameaça da lei com o castigo da culpa. Assim foi. No paraíso ameaçou-os com a morte, no desterro castigou-os com a vida. No paraíso, que era a pátria de todas as felicidades, só podiam ser ameaçados com a morte, porque a morte é o maior terror dos felizes; e no desterro, que era o lugar de todas as misérias, só podiam ser castigados com a vida, porque a vida é todo o tormento dos miseráveis. Cuidam alguns que não matar Deus a Adão e Eva foi misericórdia, e não foi senão justiça, porque, perdidas as felicidades do paraíso, assim como o morrer seria remédio. assim o não morrer foi o castigo: logo, por todas estas razões e exemplos, não só humanos, senão ainda divinos, parece que é verdadeira a distinção dos que dizem que é melhor a morte que a vida, em respeito somente dos miseráveis, mas não dos felizes.



§V

Se não há nem pode haver vidas que careçam de misérias, o que se tem dito da vida dos miseráveis se deve entender de todas e de todos. As dobradas misérias a que está sujeita a maior felicidade da natureza, que é a saúde. A morte, médico universal de todas as doenças. Felicidade dos que morreram pelejando por Tróia. Em que consiste a bem-aventurança do céu. A dupla morte de Catão.

Eu, que direi? Digo que folgara e estimara muito que esta distinção ou a limitação fora verdadeira, porque a melhor e maior parte do auditório a que prego é dos felizes desta vida, e dos que o mundo inveja e venera por tais. Mas quando Salomão chamou mais ditosos aos mortos que aos vivos, não fez distinção de vivos miseráveis a vivos felizes, senão que de todos os que vivem falou igualmente: Laudavi magis mortuos quam viventes[15]. – E para eu refutar os defensores da vida dos felizes, não quero outro argumento senão o seu. Concedem que a morte é maior bem que a vida dos miseráveis: logo, também é maior bem que a vida dos que eles chamam felizes. E se não, os mesmos felizes o digam. Pergunto. Há, ou houve, ou pode haver neste mundo vida alguma tão mimosa da fortuna e tão feliz que careça totalmente de misérias? Ninguém se atreverá a dizer nem imaginar tal coisa: logo, se não há nem pode haver vida que careça de misérias, o que se tem dito da vida dos miseráveis se deve entender de todas e de todos. Os que vulgarmente se reputam e cha¬mam felizes tanto se enganam com a sua felicidade como com a sua vida: por isso amam a vida e temem a morte. Mas este engano lhes descobriremos agora, para que conheçam que em todo o estado e em toda a fortuna a morte é o maior bem da vida, e o pó que havemos de ser o maior bem do pó que somos.

Todos os bens de que é capaz o homem, enquanto vive neste mundo, ou são bens da natureza, ou bens da fortuna, ou bens da graça; mas nenhum deles é tão sólido, inteiro e puro bem que o goze sem tributo de misérias a vida, nem a possa livrar deste tributo senão a morte. Entre os bens da natureza, o mais excelente, o mais útil e o mais necessário é aquele sem o qual nenhum outro bem se pode gozar, a saúde. E só quem compreender o número sem número de, enfermidades e dores a que está sujeita e exposta a saúde, ou geradas dentro do mesmo homem, ou nascidas e ocasionadas de fora, poderá conhecer exatamente quão carregado de duríssimas pensões, e não cheio de misérias ou deu ou emprestou à mesma natureza, ainda aos mais sãos e robustos, este calamitoso bem. Pois, que remédio? Os egípcios, entre os quais nasceu a medicina, para cada enfermidade, como refere Heródoto, tinham um médico particular; mas nem por isso saravam todos, nem de todas[16]. El-rei Ezequias mandou queimar os livros de Salomão, porque o povo, recorrendo às virtudes das ervas em suas enfermidades, deixava de acudir a Deus, que é a verdadeira raiz da saúde. Assim o refere Eusébio Cesariense. Mas enquanto duraram os mesmos livros, nem aos enfermos particulares, nem ao mesmo Salomão aproveitou aquela grande ciência médica. Até quando? Até que as próprias doenças os sujeitaram ao médico universal, que, sem aforismos nem receitas, cura em um momento a todas, que é a morte. O mors, veni nostris certus medicus malis[17]! Ó morte, vinde, que só vós sois o verdadeiro e certo médico para todos os nossos males! – É exclamação proverbial dos gregos, referida por Plutarco. Morrestes, acabaram-se as enfermidades, acabaram-se as dores, acabaram-se todas as moléstias e aflições que martirizam um corpo humano; e até o temor da mesma morte se acabou, porque os mortos já não podem morrer.

Vede a grande diferença dos mortos aos vivos. Os vivos sobre a terra temem a morte, os mortos debaixo da terra esperam a ressurreição, e quanto vai do esperar ao temer, e das isenções da imortalidade às sujeições de mortal, tanto melhor é o estado dos mortos que o dos vivos. Os que escaparam vivos do incêndio de Tróia chamavam bem-aventurados aos que morreram pelejando por ela:

O terque quaterque beati,
Queis ante hora patrum, magnae sub moenibus urbis,
Contigit oppetere[18]!

sem conhecer a bem-aventurança, nem entender o que diziam, levantaram um admirável pensamento porque a felicidade de que gozam os mortos por benefício da morte, se não é como toda a bem-aventurança do céu, é como ametade dela. A bem-aventurança do céu, enquanto positiva e negativa, compõe-se daquelas duas partes em que a dividiu Santo Agostinho quando disse: Ibi erit quidquid voles, et non,erit quidquid nolles[19]. – A primeira parte consiste na posse e fruição de todos os bens, e a segunda na privação e isenção de todos os males. Ouçamos agora a S. João no seu Apocalipse, descrevendo a mesma bem-aventurança: Et absterget Deus omnem lacrymam ab oculis eorum: et mors ultra non erit, negue clamor; negue dolor erit ultra, guia prima abierunt (Apc. 21, 4): Aos que forem ao céu, enxugar-lhes-á Deus todas as lágrimas, e já não haverá morte, nem clamores, nem gemidos, nem dores, por que estas misérias e penalidades todas pertenciam ao estado da primeira vida, que já passou. – E haverá quem possa negar que todas estas queixas e causas delas são as de que estão isentos os mortos na sepultura? Já para eles não há lágrimas, nem gemidos, nem dores, nem enfermidades, nem a mesma morte. As dores e enfermidades desta vida têm dois remédios ou alívios: um natural, que são as lágrimas e o s gemidos, e outro violento e artificial, que são os medicamentos. E a morte, não só nos livra das misérias da vida, senão também dos remédios dela. Já dissemos que Catão matou a si mesmo, mas não se matou de uma vez, senão de duas, com modo e circunstâncias notáveis[20]. Estando são e valente, meteu um punhal pelos peitos; acudiram logo, e curaram-lhe as feridas, mas ele, depois de curado, metendo a mão na mesma ferida, a fez maior, e se acabou de matar. De sorte que começou a se matar são, e acabou de se matar curado. São, para se livrar da vida, curado, para se livrar da vida e mais dos remé
dios. Por isso disse Santo Agostinho que quantas são as medicinas tantos são os tormentos. E tais são as dobradas misérias a que está sujeita a maior felicidade da natureza, que é a saúde, bastando para a tirar padecidas, e não bastando para a conservar remediadas.



§ VI

Os bens da fortuna. Quão certo é, ainda no maior auge dos bens da fortuna, qual é a dos reis, ser o maior bem da vida a morte. Os reis a todos mandam como reis e de todos são julgados como réus. As miseráveis felicidades dos que, postos na região dos raios, dos trovões e das tempestades, a dignidade e a lisonja chama Sereníssimos. O que respondeu o oráculo de Apoio a Giges, inchado com a singular prosperidade de sua fortuna. Como pagou Deus a el-rei Josias o zelo demonstrado na restauração do culto do verdadeiro Deus?

Passemos aos bens da fortuna. E, subindo ao mais alto ponto aonde ela pode chegar, preguemos um cravo na sua roda, paia que, concedendo às suas felicidades a constância que não têm, vejamos se se podem jactar ou presumir de que carecem de misérias. Os cetros e as coroas são as que, postas no cume da majestade, levam após si, com o império, os aplausos e adorações do mundo, e ao mesmo mundo, o qual, cego com os reflexos daquele esplendor, os aclama felizes e felicíssimos, não penetrando o interior e sólido da felicidade, mas olhando só, e parando no sobredourado das aparências. Omnium istorum quos incedere altos vides, bracteata felicitas est[21] disse sábia e elegantemente Sêneca. Assim como os tetos sobredourados dos templos e dos palácios o que mostram por fora é ouro, e o que escondem e encobrem por dentro são madeiros comidos do caruncho, pregos ferrugentos, teias de aranha, e outras sevandijas, assim debaixo da pompa e aparatos com que costumamos admirar os que vemos levantados ao zênite da fortuna, se víramos juntamente os cuidados, os temores, os desgostos e tristezas que os comem e roem por dentro, antes havíamos de ter compaixão das suas verdadeiras misérias, que inveja à falsa representação e engano do que neles se chama felicidade. Quem duvidou jamais de reputar a Carlos Quinto por felicíssimo, com tantasvitórias, tanta fama, tantos aumentos da monarquia? E, contudo, no dia em que renun­ciou o governo, confessou que em todo o tempo dele nem um só quarto de hora tivera livre de aflições e moléstias. O diadema antigo, insígnia dos reis e imperadores, era uma faixa atada na cabeça. E dizia Seleuco, rei da Ásia, que, se os homens soubessem quão pesada era aquela tira de pano, e quão cheia de espinhas por dentro, nenhum haveria que a levantasse do chão para a pôr na cabeça. El-rei Antígono, vendo que seu filho, pelo ser, se ensoberbecia, com que lhe abateria os fumos? An ignoras, o fili, regnum nostrum non esse aliud nisi splendidam servitutem? Não sabes, filho – lhe disse – que o nosso reino não é outra coisa que um cativeiro honrado? – Os reis são senhores de todos, mas também cativos de todos. A todos mandam como reis, e de todos são julga­dos como réus. Como o rei é a alma do reino, tem obrigação de viverem todos seus vassalos, e padecer neles e com eles quanto eles padecem. Se não padece assim não é rei, e, se padece, que maior martírio? Há-sede matar e morrer para que eles vivam, há-se de cansar para que eles descansem, e há de velar para que eles durmam, sendo mais quieto e sossegado o sono do cavador sobre uma cortiça, que o do rei debaixo de céus de brocado. Ali, desvelado, marcha pelas campanhas com os seus exércitos; ali navega os mares com as suas armadas, e a qualquer bandeira, que tremula com o vento lhe palpita o coração na contingência dos sucessos. Tais são as miseráveis felicidades, ou as adoradas misérias dos que, postos na região dos raios, dos trovões e das tempestades, a dignidade com razão, e a lisonja sem ela chama Sereníssimos.
Que seria se eu aqui ajuntasse as catástrofes e fins trágicos dos Xerxes, dos Cressos, dos Darios, e infinitos outros? Mas o meu intento só é descobrir as misérias dos felizes. A este propósito há muito que tenho notado uma coisa para mim admirável, e é que, sendo Valério Máximo tão universal nas histórias e notí­cias do mundo, e, trazendo tantos exemplos, assim domésticos como estrangeiros, em todas as matérias, quando veio a tratar da felicidade só a achou entre os roma­nos a Metelo, homem particular, e entre os reis de todas as nações a Giges, rei de Lídia. Esta é a mesma salva com que ele começa dizendo: Volubilis fortunae com­plura exempla retulimus, constanter propitiae admodum pauta narrari possunt[22]– Inchado, pois, Giges com a singular e contínua prosperidade de sua fortuna, quis-se canonizar pelo mais feliz homem do mundo, e a este fim consultou pesso­almente o Oráculo de Apolo, para que a resposta, de que não duvidava, fosse uma prova autêntica e divina da sua felicidade; enganou-se, porém, ou acabou de se enganar o já enganado rei, porque respondeu o oráculo que Aglau Sofídio era mais feliz que ele. E quem era Aglau Sofídio? Era um lavradorzinho velho, o mais pobre de toda a Arcádia, ao qual um pequeno enchido, que tinha junto à sua choupana, cultivado por suas próprias mãos, sem inveja sua ou alheia, lhe dava o que era bastante para sustentar a vida. Pois este Aglau assim pobre era mais feliz que Giges com todas as suas fortunas? Sim, porque essas mesmas fortunas, ainda que grandes e contínuas, não o livravam do temor da sua inconstância, o qual só bastava para o fazer infeliz. Debaixo deste temor se compreendiam os cuidados, as dúvidas, as imaginações, os indícios falsos ou verdadeiros da ruína que se lhe maquinasse ou podia maquinar, e todos os infortúnios possíveis, no mar e na terra, na guerra e na paz, na inveja dos êmulos, no ódio e potência dos inimigos, no descontentamento e rebelião dos vassalos, enfim, as violências secretas, os rou­bos, os subornos, as traições, os venenos, com que nem o sustento necessário à vida, nem a mesma respiração é segura. Para que se veja se era feliz quem todo este tumulto de inquietações, que só conhecia o oráculo, trazia dentro no peito. E como os bens da fortuna, ainda os maiores, quais são os dos reis, e ainda nos singular e unicamente felizes, estão sujeitos a tantas misérias, ou padecidas em si mesmas, ou no temor e receio, que não é tormento menor, nenhum outro remédio tem para escapar e se livrar delas a vida, senão o da morte.

Seja a prova em caso e pessoa, não de outra, senão da mesma suposição e dignidade, o modo com que Deus livrou a el-rei Josias. Quando Josias começou a reinar, todo o reino –que era ode Jerusalém e Judá– não só privada, mas publicamente professava a idolatria, com templos, com altares, com ídolos, com sacerdotes, e com todas as outras superstições gentílicas. A primeira coisa, pois, que fez o zelosíssimo e santo rei, foi arrasar os templos e altares, queimar os ídolos, e sacrificar-lhes os seus próprios sacerdotes, mandando degolar a todos; e logo tratou de reformar e restaurar o culto do verdadeiro Deus, repondo em seu lugar a Arca do Testamento, restituindo a seus ofícios os sacerdotes e levitas, e tornando a introduzir a observância da celebridade das festas e sacrifícios, com todos os ritos e cerimônias da lei. Mas, como pagou Deus a Josias este zelo, esta piedade, e esta valorosa resolução? Aqui entra o admirável do caso. Duas coisas mandou Deus anunciar e notificar ao rei: a primeira, que Jerusalém seria destruída, e todos seus habitadores rigorosissimamente castigados; e assim foi, porque, conquistados pelos exércitos de Nabucodonosor, todos foram levados cativos a Babilônia. A segunda, que ele, rei, morreria antes deste cativeiro; e assim sucedeu também, porque, saindo a uma batalha, foi morto nela. Pois o rei pio, zeloso e santo há de morrer, e o idólatra não? Antes, foi tanto pelo contrário que durou o cativeiro setenta anos, que era todo o tempo que os que tinham sido idólatras podiam viver. E por que ordenou Deus que os idólatras vivessem tantos anos, e o rei morresse tão antecipada¬mente, que não chegou a contar quarenta? A razão desta justiça verdadeiramente divina foi para que, vivendo eles, e morrendo o rei, o rei fosse premiado e os idólatras castigados. De sorte que aos idólatras, para que padecessem as calamidades e misérias do cativeiro, estendeu-lhes Deus a vida, e ao rei, para o livrar das mesmas calamidades e misérias, antecipou-lhe a morte. Assim o disse o mesmo Deus: ldcirco colligam te ad patres tuos, et colligeris ad sepulchrum tuum in pace, ut non videant oculi tui mala quae inducturus sum super locum istum[23]. – Em suma, que conservou Deus a vida ao povo porque o quis castigar, e antecipou a morte ao rei porque o quis livrar do castigo, que tão certo é, ainda no maior auge dos bens da fortuna, qual é a dos reis, ser o maior bem da vida a morte.



§ VII

Os bens da graça. Quem poderá melhor defender a graça da alma, senão a morte? A grande energia e alto pensamento com que disse Jó que a vida do homem é uma perpétua guerra. Quais são os combatentes entre os quais se dão as batalhas da vida do homem? Por que diz Davi, que na sepultura descansará em paz para isso mesmo? A diferença do sono e paz dos mortos em comparação dos vivos. A natural impecabilidade e a fortificação da morte.

Nos bens da graça, que são os que só restam, passa o mesmo. Sendo estes os maiores de todos, e os que própria e verdadeiramente só merecem nomes de bens, nenhuns são mais dificultosos de guardar nem mais sujeitos à miséria de se perderem. Os anjos perderam a graça no céu, Adão perdeu a graça no paraíso, e depois destas duas ruínas universais, quem houve que a conservasse sempre? Só a Mãe de Deus, pelo ser, a conservou inteira, e os demais, ou a perderam por culpas graves, ou a mancharam com as leves. Qui stat, videat ne cadat (1 Cor. 10, 12): Quem está de pé, veja não caia – diz S. Paulo. – E ele, depois de subir ao terceiro céu, se viu tão arriscado a cair, que três vezes rogou a Deus o livrasse de uma tentação, que, se o não tinha derrubado, o afrontava: Angelus Satanae, qui me colaphizet[24]. – Caiu Sansão, caiu Salomão, caiu Davi, e nem ao primeiro a sua fortaleza, nem ao segundo a sua sabedoria, nem ao último a sua virtude os tiveram mão para que não caíssem. O mundo todo é precipícios, o demônio todo é laços, a carne toda é fraquezas. E contra estes três inimigos tão poderosos da alma, estando ela cercada de um muro de barro tão quebradiço, quem a poderá defender, e nela a graça? Já sabem todos que hei de dizer que só a morte: e assim é.

Diz Jó que a vida do homem é uma perpétua guerra: Militia est vita hominis super terram[25] – tanto assim que ao mesmo viver chama ele militar: Cunctis diebus quibus nane milito[26]. – Qual seja a campanha desta guerra, não é Cartago ou Flandres, ou, como agora, Portugal, senão o mundo e a terra toda em qualquer parte: super terram. –Mas, como o mesmo Jó não faça menção de muitos, senão de um só ou de qualquer homem –vita homimnis–com razão podemos duvidar quem são os combatentes entre os quais se faz esta guerra e se dão estas batalhas? Se foram gentes e diversas nações, também ele o dissera, mas só faz menção de um homem, porque dentro em cada um de nós, como de inimigos contra inimigos, se faz esta guerra , se dão estes combates, e vence ou é vencida uma das partes. O homem não é uma só substância, como o anjo, mas composto de duas totalmente opostas, corpo e alma, carne e espírito, e estes são os que entre si se fazem a guerra, como diz S. Paulo: Caro concupiscit adversas spiritum, spiritus autem adversas cornem (Gal. 5, 17): A carne peleja contra o espírito, e o espírito contra a carne. – Por parte da carne combatem os vícios com todas as forças da natureza, por parte do espírito resistem as virtudes com os auxílios da graça; mas como o livre alvedrio subordinado do deleitável, como rebelde e traidor, se passa à parte dos vícios, quantos são os pecados que o homem comete tantas são as feridas mortais que recebe o espírito, e basta cada uma delas para se perder a graça. Por isso com razão exclama Santo Agostinho, como experimentado em outro tempo: Continua pugna, rara victoria: A batalha é contínua, e a vitória rara.

Haverá, porém, quem possa porem paz estes dois tão obstinados inimigos, e um deles tão cruel e pernicioso? Nesta vida, enquanto a mesma vida dura, não; mas no fim dela sim, porque só a morte pode fazer e faz estas pazes. Que coisa é a morte? Est separatio animae a corpore: É a separação com que a alma se aparta do corpo – e como por meio da morte a alma se divide do corpo e o espírito da carne, no mesmo ponto, divididos os combatentes, cessou a guerra, e ficou tudo em paz. Esta é a grande energia e alto pensamento com que disse Jó que aquela guerra era nomeadamente do homem vivo sobre a terra: Militia est vita hominis super terram (Jó 7, I) – porque, enquanto o homem vive e está sobre a terra padece a guerra da carne contra o espírito; mas, depois que o homem morre e jaz debaixo da terra, toda essa guerra se acabou, e se segue entre a carne e o espírito uma, não trégua, senão paz perpétua, e para sempre. Por isso, quando lançamos os defuntos na sepultura, essas são as palavras de consolação com que nos despedimos deles, dizendo: Requiescat in pace. – É cumprimento tirado e aprendido de um salmo de Davi, onde excelentemente descreve a perpetuidade desta paz. In pace in idipsum dormiam et requiescam (SI. 4, 9): Quando eu jazer na sepultura – diz Davi – dormirei e descansarei em paz para isso mesmo: in idipsum. –Que quer dizer para isso mesmo? Não se podia significar mais admiravelmente a diferença do sono, do descanso e da paz dos mortos em comparação dos vivos. Os vivos dormimos, descansamos e temos paz, mas não para isso mesmo, porque dormimos para acordar, descansamos para tornar a cansar, e temos paz para tornar outra vez à guerra; pelo contrário, os mortos dormem, descansam e estão em paz para isso mesmo: In pace in idipsum dormiam et requiescam. – Dormem para isso mesmo, porque dormem, não para acordar, senão para dormir; descansam para isso mesmo, porque descansam, não para tornar a cansar, senão para descansar; e gozam a paz para isso mesmo, porque não gozam a paz para tornar à guerra, senão para a lograr a perpétua e quietamente: Requiescat in pace.

E como por meio desta perpétua paz cessa a guerra da carne contra o espírito, e cessam as vitórias do pecado e perigos da graça, esta natural impecabilidade da morte é a mais cabal razão de ser a morte o maior bem da vida, porque, sendo o maior mal da vida o pecado, e estando a mesma vida sempre sujeita e arriscada a pecar, só a morte a livra e segura deste maior de todos os males. Morreu um moço virtuoso e pio na flor de sua idade, e admirou-se muito o mundo de que morresse tão depressa o bom, ficando vivos e sãos no mesmo mundo muitos maus, que pareciam mais dignos da morte. Mas a causa desta admiração é, diz o Espírito Santo, porque os homens não entendem as razões de Deus. Três razões teve Deus para antecipar ou apressar a morte àquele moço: a primeira, porque lhe agradou a sua alma, e a quis levar para si: Placita enim eras Deo anima illius[27]; a segunda, porque o quis livrar das ocasiões da maldade: Properavit educere illum de medio iniquitatum[28]; a terceira, porque o quis fortificar: Quare munierit illum Dominus[29]. – Aqui reparo. Se Deus lhe tirou a vida para o fortificar, que fortificação é esta, e contra quem? O contra quem são os vícios e pecados; a fortificação é aquela onde a morte defende os que matou, que é a sepultura. O homem vivo, com todas as portas dos sentidos abertas, é como a praça sem fortificação, que pode ser acometida e entrada por toda a parte; porém o morto, com as mesmas portas cerradas, e cerrado ele dentro da sepultura, não há castelo tão forte, nem fortaleza tão inexpugnável a todo o inimigo, porque nem pode ser vencida do pecado, nem ainda acometida. Muitas fortificações inventaram os santos para defender do pecado os vivos, sendo a principal de todas os muros da religião; mas nem os muros, nem os claustros, nem os templos, nem os sacrários bastam para defender e segurar do pecado os vivos: basta uma só pedra, ou a pouca terra de uma sepultura, para ter tão defendidos e seguros os mortos, que nem pequem jamais, nem seja possível pecarem. E esta é a sua impecabilidade.



§ VIII

O maior bem da vida entre os sábios da gentilidade. A resposta de Sileno a el-rei Midas. Biton e Cleobo, Agamedes e Trofônio e o maior bem que lhes podiam conceder os deuses.

Resumindo, pois, as três partes deste último discurso, delas consta que os bens da natureza, da fortuna e da graça, todos estão sujeitos a grandes misérias, das quais só nos pode livrar a morte; donde se segue que a mesma morte, sem controvérsia, é o maior bem da vida. E para que em uma só demonstração vejamos inteira, e não por partes, esta mesma prerrogativa da morte, não inculcada de novo, mas crida, aprovada e impressa no juízo dos homens, ouçamos uma notável antigüidade. Como é inclinação natural do homem conhecer o bem com o entendimento e apetecê-lo com a vontade, foi questão antiquíssima entre os homens, ainda quando eram gentios, em que consistisse o maior bem desta vida. E porque Deus, como diz S. Paulo, não só governa com sua universal providência os fiéis, senão também os infiéis, sendo falsos naquele tempo os mestres, que os homens ouviam, e falsos os deuses que adoravam, não só permitiu, mas quis a mesma providência que destas duas fontes tão erradas bebessem uma verdade tão importante, como ser, dentro dos limites e ordem da natureza, o maior bem da vida a morte. E foi desta maneira.

Houve entre os sábios da gentilidade um homem chamado Sileno, semelhante na opinião aos nossos profetas, cujas respostas, como inspiradas por instinto mais, que natural, eram recebidas e cridas como oráculos. A este Sileno, pois, consultou el-rei Midas, sobre qual fosse o maior bem desta vida, e, depois de muitos rogos e instâncias, a resposta que dele alcançou foi esta: Non nasci omnium est optimum: mortuum autem esse longe est melius quam vivere[30]: O melhor de tudo é não nascer; mas, no caso de haver nascido, muito melhor é ao homem o morrer que o viver. – Assim o disse Sileno, e não só do vulgo foi recebido como provérbio este dito, mas o aprovaram e celebraram sempre os dois maiores lumes da filosofia racional, Platão e Aristóteles. Píndaro, príncipe dos poetas líricos da Grécia, parece que, duvidoso ainda desta verdade, quis fazer maior exame dela, e como pelo oráculo de Delfos lhe fosse respondido o mesmo, que faria? Fez o que devera fazer com semelhante desengano todo o cristão. Deixou as musas, e em vez de compor versos, tratou de compor a vida, His auditis, ad mortein se comparasse, et pauto post vivendi finem fecisse – diz Plutarco.

Não parou aqui a providência divina, mas, para maior prova deste desengano, obrigou ao pai da mentira que falava e obrava nos ídolos, a que muito a seu pesar o confirmasse com dois notáveis prodígios. Agria era sacerdotisa da deusa Juno, e como na mesma hora em que havia de fazer o sacrifício tardassem os cavalos que a costumavam levar em carroça, dois filhos que tinha, chamados Biton e Cleobo, se meteram no lugar dos cavalos; e com tanta força e pressa tiraram a carroça, que nem um momento de tempo faltou a mãe à pontualidade do sacrifício. Foi tão admirado e estimado este ato, verdadeiramente heróico de piedade para com a mãe, e de religião para com a deusa, que deu confiança a Agria para pedir a Juno, em prêmio dela, que desse àqueles seus dois filhos não menos que a melhor coisa que os deuses desta vida podiam dar aos homens. Concedeu a deusa, como tão bem servida, o que a mãe pedia. E qual seria o despacho da petição? No mesmo ponto caíram mortos debaixo dos seus olhos os mesmos filhos, confirmando a falsa deidade, com verdadeiro documento, que entre os bens e felicidades naturais, que ao homem podem suceder nesta vida, o maior e o mais seguro é a morte. A este famosíssimo par, Biton e Cleobo, ajunta Platão outro não menos famoso, Agamedes e Trofônio. Edificaram estes dois um templo a Apolo Pítio, e no dia da dedicação oraram ao deus desta maneira: que se aquela obra lhe agradava, o seu intento era pedirem lhes concedesse o que melhor podia estar a um homem nesta vida; e porque eles não sabiam que coisa fosse esta melhor, ele, de quem esperavam a mercê, o resolvesse. Respondeu Apoio que dali a sete dias lhes concederia o que pediam, e o que sucedeu ao sétimo dia foi que, deitando-se a dormir Agamedes e Trofônio, nunca mais acordaram: Cumque obdormissent, nunquam deinde surrexisse.

Já dissemos que estes prodígios foram efeitos da providência divina, a qual nestes casos, como em outros muitos, desenganou aos homens pelos mesmos de quem eram enganados. Pois, se Deus respondeu com aqueles sinais aos que desejavam e pediam o maior bem da vida, por que deu a uns a morte e a outros o sono de que não acordaram? Porque em frase também divina o dormir é morrer, e o tornar a viver, acordar: Lazarus, amicus noster, dormit, sed vado ut a somno excitem eum[31]. – E como um e outro sinal, ou era declaradamente, ou significava a morte, a uns e outros quis ensinar Deus – e neles a todos os homens – que a mesma morte, que eles não pediam nem desejavam, era o maior bem da vida, que desejavam e pediam. Desejais e pedis o maior bem da vida? Pois acabai de viver, e gozá-lo-eis na morte. E esta verdade, então admirada, e antes e depois tão mal entendida, quis a mesma providência, para que a acabássemos de entender, que ficasse estabelecida e perpetuada como em quatro estátuas, não levantadas, mas caídas: em Biton e Cleobo mortos, e em Agamedes e Trofônio dormindo.



§ IX

Se o pó que havemos de ser é o maior bem do pó que somos, que devemos fazer os vivos? A resolução de S. Paulo: viver como mortos, viver em Deus e em Cristo, e não com o mundo. A morte, correção geral que emenda em nós todos os vícios. Conclusão: que devemos fazer para que o pó que somos e o pó que havemos de ser, sobre a terra, como planta, e debaixo da terra, como raiz, seja fecundo.

A vista, pois, destas quatro estátuas, as quais, enquanto vivas e em pé eram o pó que somos, e, enquanto caídas e jazendo em terra, são o pó que havemos de ser, que fará todo o entendimento racional e cristão? Se o pó que havemos de ser é o maior bem do pó que somos, e se o maior bem da vida é a morte, que havemos ou que devemos fazer os vivos? Hereges houve, como de seu tempo refere Santo Agostinho, os quais, interpretando impiamente aquelas palavras de Jesus Cristo: Adhuc autem et animam suam[32] – em que parece nos manda ter ódio à vida, se matavam com suas próprias mãos. Porém S. Paulo, que mais vivia em Cristo que em si mesmo, como verdadeiro e canônico intérprete do espírito interior de seus divinos oráculos não diz que o cristão se mate, senão que viva, mas que viva como morto. Em uma parte: Quasi morientes et ecce vivimus[33] – e em outra: Mortui estis, et vita vestra abscondita est cum Christo in Deo[34]. – Assim ajuntou e concordou o apóstolo dois extremos tão contrários, como a morte e a vida; assim quis introduzir no mundo uma morte viva e uma vida morta, persuadindo os vivos a que vivamos como mortos, e com grande razão e conveniência. Se o melhor bem da vida é a morte, passemos como mortos à melhor vida. E se dos mortos dizemos também que os levou Deus para si, deixemo-nos levar de Deus, e vivamos como mortos, para viver nele e com ele. Esta vida escondeu Cristo como morto e Deus como imortal, não em outro lugar menos secreto, nem em outro extremo menos contrário à mesma vida que a morte: Mortui estis, et vita vestra abscondita est cum Christo in Deo. - Na vida e morte comum, os mortos estão escondidos e os vivos andam manifestos; mas na vida e morte de que fala o apóstolo, a morte e os mortos andam manifestos: Mortui estis – e a vida e os vivos escondidos: Et vita vestra abscondita est cum Christo in Deo.

E se perguntarmos ao mesmo S. Paulo de que modo havemos de viver como mortos, bastavam por resposta as mesmas palavras com que diz que vivamos com Cristo e em Deus: Cum Christo in Deo. – Quem vive em Deus não vive em si, quem vive com Cristo não vive com o mundo, e quem não vive em si nem com o mundo, este verdadeiramente vive como morto. O morto tem olhos, e não vê; tem ouvidos, e não ouve; tem língua, e não fala; tem coração, e não deseja; e, posto que o morto vivo pode desejar, falar, ouvir e ver, nem vê o que não é lícito que se veja, nem ouve o que não é lícito que se ouça, nem fala o que não convém que se fale, nem deseja o que não convém que se deseje, porque é morto às paixões e aos apetites, e, posto que viva o sentimento, não vive à sensualidade. Isto é viver em Deus, e não em si. E que é viver com Cristo, e não com o mundo? É estar morto a tudo o que o mundo ama, a tudo o que o mundo estima, a tudo o que o mundo venera, a tudo o que o mundo adora, a tudo o que chama honra, a tudo o que chama interesse, a tudo o que chama boa ou má fortuna, porque tudo o que é próspero ou adverso, alto ou baixo, precioso ou vil, pesado na balança da morte viva, é vaidade, é fumo, é vento, é sombra, é nada. E a todos os que assim vivem, ou viverem, podemos dizer com S. Paulo: Mortui estis.

Mas porque o pó que somos é solto, inquieto, vão, e com qualquer sopro de ar se levanta e desvanece, e de si mesmo forma remoinhos e nuvens, com que na maior luz do sol fica às escuras, por isso o mesmo apóstolo nos remete, como por ilação necessária, do pó que somos ao pó que havemos de ser, dizendo: Mortificate ergo membra vestra, quae sunt super terram (Col. 3, 5): Pelo que, mortificai os membros do vosso corpo, que estão sobre a terra. – A energia da palavra super terram não está muito à flor da terra. Mas, ainda que parece supérflua, é certo que não carece de grande mistério. Pois, se bastava dizer: mortificai vosso corpo – por que acrescenta: que está sobre a terra? A mortificação só pertence aos que vivem, e todos os que vivem estão sobre a terra; pois, se isto por si mesmo estava dito, por que o nota e pondera o apóstolo como coisa particular? Porque falou do nosso corpo enquanto está sobre a terra, com alusão ao mesmo corpo quando estará debaixo da terra. O mesmo corpo nosso, que enquanto vivemos está sobre a terra, depois da morte está debaixo da terra. E se o corpo que está sobre a terra se comparar consigo mesmo, quando estiver debaixo da terra nenhuma consideração pode haver mais eficaz para o persuadir a que viva como morto. Dize-me, corpo meu, depois que estiveres debaixo da terra, que hás de fazer? Hás de continuar nos mesmos vícios em que todo te empregavas quando estavas sobre a terra? Hás de continuar nos mesmos vícios que, pode ser, foram os que te mataram e te apressaram a sepultura? Agora o não podes negar com a voz, e depois confessarás que não com o silêncio. Todo o mundo é como aquele de quem disse Tácito: Magis sine vitiis, quam cum virtutibus. – O morto não tem virtudes, mas também não tem vícios. Não tem ódios, não tem invejas, não tem cobiça, não tem ambição, não tem queixa, não murmura, não se vinga, não mente, não adula, não rouba, não adultera. Pois, se tudo hás de carecer debaixo da terra, por que te não absténs disso mesmo enquanto estás sobre ela?

O morto, quando o levam à sepultura pelas mesmas ruas por onde passeava arrogante, tão contente vai envolto em uma mortalha velha e rota como se fora vestido de púrpura ou brocado. Chegado à sepultura, tão satisfeito está com sete pés de terra como com os mausoléus de Cária ou as pirâmides do Egito; e se até essa pouca terra que o cobre lhe faltasse, diria se pudesse falar, que a quem não cobre a terra cobre o céu: Caelo tegitur Qui non habet urnam. – Pois, se então tão pouca diferença hás de fazer da riqueza ou pobreza das roupas, por que agora te desvanecem tantos e gastas o que não tens na vaidade das galas? Pois, se então hás de caber em urna cova tão estreita, por que agora te não metes entre quatro paredes, e procuras a largueza da morada tanto maior que a do morador, e invejas a ostentação e magnificência dos palácios? Ainda resta por te dizer o que mais me escandaliza. Se quando estás debaixo da terra todos passam por cima de ti, e tepisam, e te não alteras por te ver debaixo dos pés de todos, agora, que és o mesmo, e não outro, só porque estás com os pés sobre menos terra da que então hás de ocupar, por que te ensoberbeces, por que te iras, por que te inchas e enches de cólera, de raiva, de furor, e a qualquer sombra ou suspeita de menos veneração ou respeito o queres vingar, não menos que com o sangue e a morte? Mas é porque a mesma morte te não amansa e emenda. Ouve, enquanto não perdes o sentido de ouvir, um notável dito de Davi: Quoniam supervenit mansuetudo, et corripiemur[35]. – A palavra corripiemur quer dizer seremos emendados, porque a morte é uma correção geral que emenda em nós todos os vícios. E de que modo? Por meio da mansidão, porque a todos amansa: Quoniam supervenit mansuetudo. – Morreu o leão, morreu o tigre, morreu o basilisco: e onde está a braveza do leão, onde está a fereza do tigre, onde está o veneno do basilisco? Já o leão não é bravo, já o tigre não é fero, já o basilisco não é venenoso, já todos esses brutos e monstros indômitos estão mansos, porque os amansou a morte: Quoniam supervenit mansuetudo. – E se assim emenda, e tanta mudança faz a morte nas feras, por que a não fará nos homens?

Seja esta a última razão – a qual devem os racionais levar na memória – para que considerem, enquanto estão sobre a terra, o que hão de ser quando estiverem debaixo dela, e com este espelho posto diante dos olhos de seu próprio corpo, o persuadam a que se acomode a ser por mortificação, enquanto vivo, aquilo mesmo que há de ser, enquanto morto, depois de sepultado. Perguntou um monge ao abade Moisés, famoso padre do ermo, como poderia um homem adquirir a mortificação que ensina São Paulo, tal que, estando vivo, vivesse como morto? E respondeu o abade que de nenhum outro modo nem tempo, senão quando totalmente se persuadisse que havia já um triênio que estava debaixo da terra: Nisi quis arbitratus fuerit se habere Jaza triennium in sepulchro, ad hunc sermonem pervenire non potest[36]. – E quem está certo que o seu corpo há de estar debaixo da terra, não três anos, nem três séculos, senão enquanto durar o mundo até o fim. como não persuadirá ao mesmo corpo, e o sujeitará a que viva como morto estes quatro dias, e incertos, em que pode tardar a morte? Se este corpo, que hoje é pó sobre a terra, amanhã há de ser nó debaixo da terra, por que se não acomodará e concordará consigo mesmo, a viver e morrer de tal modo que na vida logre o maior bem da morte, e na morte não padeça o maior mal da vida? Assim faremos que o pó que somos e o pó que havemos de ser – o qual como pó é estéril – sobre a terra, como planta, e debaixo da terra, como raiz, seja fecundo, e na vida colhamos o fruto da graça, e na morte o da glória. Quam mihi et vobis praestare dignetur Dominas Deus omnipotens[37].




[1] Tu és pó, e em pó te hás de tomar (Gên. 3, 19).

[2] E eis aqui está neste lugar quem é mais do que Salomão (Mt. 12, 42).

[3] Tornando a bramir em si mesmo (Jo. 11, 38).

[4] Eu por amor de vós folgo (Jo. 11, 15).

[5] Rupert, libro in Joan; Isidor Pelusiota,

[6] Conc. Tolet. 3 releu. cap. qui de vera 13.

[7] Cada um tem a seu favor uma forte opinião. Se o vencedor agrada aos deuses, o vencido agrada a Catão (Lucanus lib.l, 127).

[8] Se a ti te parece outra coisa, peço-te que me tires a vida, e que ache eu graça diante dos teus olhos (Núm. 11, 15).

[9] Desejou para si a morte (3 Rs. 19, 4).

[10] Basta-me de vida, Senhor, tira a minha alma, porque eu não sou melhor do que os meus pais (ibidem).

[11] Por isso escolheu a minha alma um laço, e os meus ossos a morte (Jó 7, 15).

[12] Não viverei jamais, perdoa-me (ibid. 16).

[13] Ai de mim, que o meu desterro se prolongou (SI. 119, 5).

[14] Sen. in Hercul.Furen.

[15] Louvei mais os mortos do que os vivos (Ecl. 4, 2).

[16] Herod. lib. 2.

[17] Plutarc. in Consola!. ad Apoll.

[18] Ó três e quatro vezes felizes aqueles a quem coube encontrar a morte sob os olhares dos pais, debaixo das muralhas da grande Tróia (Virg. En. 1, 94).

[19] Haverá ali tudo o que quiseres, e não haverá o que não quiseres (S. Aug.).

[20] Ita refertur a Seneca.

[21] Idem Seneca Epist. 115.
[22] Relatamos muitos exemplos acerca da instabilidade da fortuna, mas não poderemos relatar senão pouquíssimos sobre sua constância (Valer: Maxim lib. 70 c. I).

[23] Por isso eu te farei descansar com teus pais, e serás sepultado em paz no teu sepulcro, para que os teus olhos não vejam os males que eu hei de fazer cair sobre este lugar (4 Rs. 22, 20).

[24] Que é o anjo de Satanás, para esbofetear (2 Cor. 12, 7).

[25] A vida do homem sobre a terra é uma guerra (Jó 7, 1).

[26] Todos os dias que passo agora nesta guerra (Jó 14, 14).

[27] Porque a sua alma era agradável a Deus (Sab. 4, 14).

[28] Ele se apressou a tirá-lo do meio das iniqüidades (ibidem.).

[29] Por que o Senhor o pôs a salvo (ibid. 17).

[30] Plutarc. supra citatus, Cicero, Plato, Aristot. et alii.

[31] Nosso amigo Lázaro dorme, mas eu vou despertá-lo do sono (Jo. 11,11).

[32] E ainda não aborrece a sua vida (Lc. 14, 26).

[33] Como morrendo, e eis aqui está que vivemos (2 Cor. 6, 9).

[34] Já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus (Col. 3, 3).

[35] Porque sobreveio mansidão, e seremos arrebatados (SI.89,10).

[36] In vitis PP. lib. 7, c. 26.

[37] A qual o Senhor Deus onipotente se digne conceder a mim e a vós.