SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA - Padre Antônio Vieira

SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA

EM ROMA, NA IGREJA DE S. ANTÔNIO DOS PORTUGUESES.
ANO DE 1673, AOS 15 DE FEVEREIRO,
DIA DA TRASLADAÇÃO DO MESMO SANTO.

Pulvis es, et in pulverem reverteras. [1]

§I


Duas coisas prega hoje a Igreja: pó e pó. Um é a triaga e corretivo do outro, como os pós venenosos com que se quis envenenar o imperador Valente.


Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Assim comecei eu o ano passado, quando todos estáva­mos mais longe da morte; mas hoje, que também estamos todos mais perto dela, importa mais tratar do remédio, que encarecer o perigo. Adiantando pois o mesmo pensamento, e sobre as mesmas palavras, digo, senhores, que duas coisas prega hoje a Igreja a todos os vivos: uma grande, outra maior; uma triste, outra alegre; uma temerosa, outra segura; uma certa e necessária, outra contingente e livre. E que duas coisas são estas? Pó e pó. O pó que somos: Pulvis es, e o pó que havemos de ser: In pulverem reverteras. O pó que havemos de ser é triste, é temeroso, é certo e necessário, porque ninguém pode escapar da morte; o pó que somos é alegre, é seguro, é voluntário e livre, porque se nós o quiser­mos entender e aplicar como convém, o pó que somos será o remédio, será a triaga, será o corretivo do pó que havemos de ser.



Notável foi o caso sucedido em tempo do imperador Valente, do qual disse então, com elegante juízo, o poeta Ausônio aquela tão celebrada sentença: Et cum Pata volunt, bina venena juvant.[2] Quis uma inimiga doméstica tirar a vida com veneno ao senhor da casa, e depois de ter medicado a bebida com certos pós venenosos, duvidando ainda se teriam bastante eficácia para segurar melhoro efeito, mandou buscar outros. Vieram os segundos pós, lança-os na mesma taça a traidora, bebe o inocente marido, mas quando ela esperava que caísse subitamente morto, ele ficou tão vivo e sem lesão como dantes. Admirável acontecimento! Se os primeiros pós bastavam para matar, e os segundos também, ambos juntos, por que não mataram? Este homem não era Mitrídates, que se alimentasse com veneno. Se bebia só os primeiros pós morria; se bebia só os segundos, também morria. Pois por que não morreu bebendo uns e mais os outros? Porque os segundos pós foram corretivos dos primeiros. A guerra que haviam de fazer ao coração, fize­ram-na entre si, e em vez de matar, mataram-se. Tais são os dois pós com que hoje nos ameaça a sentença universal de Adão: Pulvis es, um pó; In pulverem reverteris, outro pó, ambos mortais, ambos venenosos, mas se nós quisermos, não está na mão dos fados, senão na nossa, que um seja a triaga e o corretivo do outro. Isto é o que determino pregar hoje. A Igreja põe-vos sobre a cabeça uma cinza feita de palmas; eu hei-vos de meter na mão uma palma feita de cinzas. Havemos de vencer um pó com outro pó; havemos de curar um veneno com outro veneno; havemos de matar uma morte com outra morte: a morte do pó que havemos de ser, com a morte do pó que somos: Pulvis es, et in pulverem reverteris. Para que eu saiba preparar estes pós de modo que venham a ter uma tão grande virtude, e para que vós e eu saibamos aplicar como convém, não por cerimônia, que não é o dia disso, senão muito de coração, peçamos a assistência da divina graça: Ave Maria.





§II



Ser pó por eleição, antes de ser pó por necessidade, os que morrem quando mor­rem, segundo Davi, e os que morrem antes de morrer, segundo S. João. Os três perigos da morte: ser uma, ser incerta, ser momentânea.



Pulvis es, et in pulverem reverteris. Homem cristão, com quem fala a Igreja, és pó e hás de ser pó. Que remédio? Fazer que um pó seja conetivo do outro. Sê desde logo o pó que és, e não temerás depois ser o pó que hás de ser. Sabeis, senhores, por que tememos o pó que havemos de ser? E porque não queremos seropóque somos. Sou pó, e hei de ser pó; pois antes de sero pó que hei de ser, quem ser opó que sou. Já que hei de serpó por força, quero ser pó por vontade. Nãoémelhor que faça desde já a razão, o que depois há de fazer a natureza? Se a natureza me há de resolver em pó, eu quero-me resolver a ser pó, e faça a razão por remédio, o que há de fazer a natureza sem remédio. Não sei se entendestes toda a metáfora Quer dizer mai s claramente que o remédio único contra a morte, é acabar a vida antes de morrer. Este é o meu pensamento, e envergonho-me, sendo pensamento tão cristão, que o dissesse primeiro um gentio. Considera quam pulchra res sit consummare viram ante mortenr deinde expectare secunrm reliquam temporis sui partem.[3] Lucílio meu, diz Sêneca, escrevendo de Roma à Sicília O pensamento saiu de Roma, e fora melhor que não saísse. — Lucílio meu, considera com atenção o que agora te direi, e toma um conselho que te dou como mestre e como amigo. Se queres morrer seguro, e viver o que te resta sem temor, acaba a vida antes da morte. — Ó grande e profundo conselho, merecedor verdadeiramente de melhor autor, e digno de ser abraçado de todos os que tiverem fé e entendimento! Consumare viram ante morrem: Acabar a vida antes de morrer, e ser pó por eleição, antes de ser pó por necessidade. Isto disse e ensinou um homem gentio, porque para conhecer esta verdade não é necessário ser cristão; basta ser homem: Memento homo.



Suba agora a fé sobre a razão, venha a autoridade divina sobre a humana, e ouçamos o que diz o céu à tetra. Audivi vocem de caelo dicentem mihi: Scribe: Beati mortui qui in domino moriuntur (Apc. 14, 13): Ouvi, diz S. João, uma voz do céu que me dizia e me mandava escrever esta sentença: Bem-aventurados os mortos que morrem em o Senhor. — Celestial oráculo, mas dificultoso! Quis mortuus mori potest?–argúi apergunta S. Ambrósio.–Que morto há que possa morrer? Nullus procul dubio — Nenhum. — Tudo acaba a morte, e tudo se acaba com a  morte, até a mesma morte. Quem morreu, já não pode morrer. Só os mortos têm este privilégio contra a juris­dição e império universal da morte. São sujeitos à morte os príncipes, os reis, os monarcas; só os mortos, depois que uma vez lhe pagaram tributo, ficarão isentos de sua jurisdição. Por isso Tertu­liano chamou judiciosamente a sepultura mortis asylum: asilo, e sagrado, da morte. Contra a alçada da morte, nem o Vaticano é sagrado, mas a sepultura sim, porque os mortos já não podem morrer. Como diz logo a voz do céu a S. João: Bem-aventurados os mortos que morrem em o Senhor? Mortos que morrem? Que mortos são estes? São aqueles mortos que acabam a vida antes de morrer. Os que acabam a vida com a morte, são vivos que morrem, porque os tomou a morte vivos; os que acabam a vida antes de morrer, são mortos que morrem, porque os achou a morte já mortos. Illi sunt beati, et illi in Domino moriuntur, qui prius moriuntur mundo, postea came, — responde o mesmo S. Ambrósio. Sabeis quais são os mortos que morrem? São aqueles que acaba­ram a vida antes de morrer, aqueles que morreram ao mundo antes que a morte os tire do mundo: Qui prius moriuntur mundo, postea came. Estes são os mortos que morrem; estes são os que morrem em o Senhor; estes são os que a voz do céu canoniza por bem-aventurados: Beati mortui.



E se os que morrem mortos são bem-aventurados, os que morrem vivos, que serão? Sem dúvida mal-aventurados. Grande texto de Davi: Veniat mors super illos, et descendant in infernum viventes (SI. 54, 16): Venha a morte sobre eles, e desçam vivos ao inferno. — A primeira parte desta sentença, faz estranha e dificultosa a segunda. Que possam homens descer vivos ao inferno, exemplo temos em Datã e Abiron: abriu-se a terra, e engoliu-os o inferno vivos (Núm. 16, 32). Mas o caso do nosso texto ainda encerra maior maravilha. Diz que virá a morte sobre eles: Veniat mors super illos, e que assim descerão vivos ao inferno: Et descen­dant in infernum viventes. Se a morte veio sobre eles, já os matou, e se já são mortos, como diz o profeta que desceram ao inferno vivos? Porque esse é o estado em que os achará a morte. Não fala o profeta do estado em que hão de chegar ao inferno, senão do estado em que os achará e tomará a morte, quando lá der com eles. A morte quando vem, mata a cada um no estado em que o acha. Aos que acabaram a vida antes de morrer, mata-os já mortos; aos que não quiseram acabar a vida antes da morte, mata-os vivos. Estes tais, vem a morte sobre eles; os outros, vão eles sobre a morte. E vai tanta diferença de vir a morte sobre vós, ou irdes vós sobre ela, vai tanta diferença de morrer assim vivo, ou já morto, que os que morrem mortos, são os que têm seguro o céu: Beati mortui, qui in Domino moriuntur; e os que morrem vivos, são os que vão ao inferno: Veniat mors super illos, et descendant in infernum viventes.



Senhores meus, o dia é de desenganos. Morrer em o Senhor, ou não morrer em o Senhor, haver de ser bem-aventurado, ou não haver de ser bem-aventurado, é o ponto único a que se reduz toda esta vida e todo este mundo, todas as obras da natureza, e todas as da graça, tudo o que somos, e tudo o que havemos de ser, porque é salvar, ou não salvar. Este é o negócio de todos os negócios, este é o interesse de todos os interesses, esta é a importância de todas as importâncias, e esta é e deve ser na cúria, e fora dela, a pretensão de todas as pretensões, porque este é o meio de todos os meios, e o fim de todos os fins: morrer em graça, e segurar a bem-aventurança. E se me perguntar­des: essa bem-aventurança, e esse seguro, e essa graça, por que a não promete a voz do céu aos vivos que morrem, senão aos mortos que morrem: Mortui qui moriuntur? A razão verdadeira e natural, e provada com a experiência de todos os que viveram e morreram, é porque aqueles que morrem quando morrem, hão de contrastar com todos os perigos e com todas as dificuldades da morte, que é coisa muito arriscada naquela hora; porém os que morrem antes de morrer, já levam vencidos e superados todos esses perigos e todas essas dificuldades, porque na primeira morte desarmaram e venceram a segunda.



Três coisas (dividamos o discurso para que declaremos e apartemos bem este ponto) três coisas fazem duvidosa, perigosa, e terrível a morte: ser uma, ser incerta, e ser momentâ­nea. Estas são as três cabeças horrendas deste Cérbero, estas são as três gargantas por onde oinferno engole o mundo. E de todas estas dificuldades e perigos se livra seguramente só quem? Quem não guarda a morte para a morte, quem acaba a vida antes de morrer, quem se resolve a ser pó antes de ser pó: Pulvis es.





§ III



Primeira terrível condição da morte: ser uma. Razão da morte de Lázaro. Deus deixou o nascer à natureza e o morrer à eleição. O inferno, morte segunda para aqueles que só morrem uma só vez. A dupla morte das árvores.



Primeiramente é terrível e terrivelíssima condição da morte, ser uma: Statutum est hominibus semel mori.[4] Hei de morrer, e uma só vez. A lei geral de Adão diz: Morte morieris: Morrerás (Gên. 2, 17). A glosa de S. Paulo acrescenta: Semel: Uma vez. E sendo a lei tão temerosa, muito mais terrível é a glosa que a mesma lei. Os males desta vida, quanto mais se multiplicam, tanto são maiores:Multiplicabo aerumnas tuas,[5] disse Deus a Eva. O maior mal da morte é não se poder multiplicar. Se a unidade da morte se multiplica­ra, e se pudera morrer mais de uma vez, apelara-se de uma para a outra. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, meteu cinco pedras no surrão, porque se errasse a primeira pedra­da, pudesse apelar para as outras pedras (1 Rs. 17, 40). Todos havemos de sair a desafio com este grão-gigante, com este Golias da morte, mas o vencer ou não vencer, está em um só tiro. Quem disse: Non licet in bello bis errare, errou [6] O que se erra em uma batalha, pode-se emendar na outra, e o que se perdeu em uma rota, pode-se recuperar em uma vitória: só a morte é aquela em que não é lícito errar duas vezes. Ergo erravimus (Sab. 5, 6): Enfim erramos, — diziam depois de mortos aqueles que tinham dito pouco antes: Corone­mus nos rosis, antequam marcescant (Sab. 2, 8): Coroemo-nos de rosas, antes que se mur­chem. — Pois se errastes, por que não emendais o erro? Porque já não é tempo; somos mortos. Muito mais temerosa é nesta parte a morte do corpo que a morte da alma. Para a morte da vida espiritual há contrição, há penitência; para a morte da vida corporal não instituiu Deus sacramento, nem há remédio. Quem a errou uma vez, errou-a para sempre. A transmigração deste mundo para o outro não é como a transmigração de Pitágoras. Se a alma, depois de viver em um corpo, pudera animar outro, depois de o homem morrer a primeira vez em um ladrão, pudera morrer a segunda em um anacoreta. Mas quem uma vez morreu Judas, não lhe resta outra morte para morrer Paulo. Uma só morte, ou boa para sempre, ou má para sempre: Semel.



Não há dúvida que é terrível condição esta da morte. Mas para quem terrível? Para quem morre quando morre. Porém quem morre antes de morrer, zomba desta condição e ri-se desta terribilidade: Ridebit in die novissimo.[7] Que se me dá a mim que a morte seja uma, se eu posso fazer que sejam duas? A morte não tem remédio depois, mas tem remédio antes. Constituisti terminos ejus, qui praeteriri non poterunt. [8] Notai a palavra praeteriri. A morte é um termo que se não pode passar da parte dalém, mas pode-se antecipar da parte daquém. Não tem remédio depois, porque depois de uma morte não há outra morte; mas tem remédio antes, porque antes de uma morte pode haver outra. Por lei e por estatuto hei de morrer uma vez, mas na minha mão e na minha eleição está morrer duas, e este é o remédio. Morreu Lázaro, enterraram-no as irmãs, che­gou Cristo ao sepulcro, e chorou. A vista destas lágrimas e da sepultura de Lázaro, admirados os circunstantes diziam: Non poterat hic, qui aperuit oculos caeci nati, facere ut hic non moreretur? (Jo. 11, 37): Este que chora, não é o mesmo que deu a vista ao cego de seu nascimento? Sim. Pois como não impediu que morresse Lázaro? — Se chora, é seu amigo; se deu vista ao cego, é podero­so: é amigo e poderoso, e não faz por seu amigo o que pode? Se o podia sarar, por que o deixou morrer, e não fez o que podia? Não fez Cristo neste caso o que podia, porque nos quis ensinar com este caso a fazer o que podemos. Quis-nos ensinar Cristo a morrer duas vezes. Altamente Santo Agostinho: Ut unus homo sernel nasci, et bis mori disceret. Deixou Cristo morrer a Lázaro, e não o quis sarar enfermo, senão ressuscitar morto, para que à vista deste exemplar (morrendo Lázaro agora, e tomando a morrer depois)–aprendessem e soubessem os homens, que nascendo uma só vez, podem morrer duas: Semel nasci et bis mori. Oh! divino documento do divino Mestre: Nas­cer uma vez, e morrer duas vezes!



Bem creio eu que haverá bem poucos que quiseram antes trocados estes termos, e poder nascer duas vezes, para escolher nascimento. Mas Deus que nos fez para a eternidade, e não para o tempo, para a verdade e não para a vaidade, deixou o nascer à natureza, e o morrer à eleição. No nascer, em que todos somos iguais, não pode haver erro, e por isso basta nascer uma vez; no morrer, em que o erro ou acerto importa tudo, e há de durar para sempre, era justo que o homem pudesse morrer duas vezes, para eleger a morte que mais quisesse, e para aprender, morrendo, a saber morrer. Nenhuma coisa se faz bem da primeira vez, quanto mais a maior de todas, que é morrer bem. Reparo é digno de toda a admiração, que sendo tantas as meditações da morte, e tantos os espertadores deste desengano, sejam tão poucos os que sabem morrer. Mas a razão desta experiência e desta desgraça é porque as artes ou ciências práticas não se aprendem só especulando, senão exercitando. Como se aprende a escrever? Escrevendo. Como se aprende a esgrimir? Esgrimindo. Como se aprende a navegar? Navegando. Assim também se há de aprender a morrer, não só meditando, mas morrendo. Por isso Cristo nos ensinou em Lázaro a morrer duas vezes: uma vez para que aprendêssemos, outra para que soubéssemos morrer. Ao paralítico, e a outros a quem o Senhor deu saúde milagrosa, de­pois de os sarar, pregava-lhes; a Lázaro, e aos demais que ressuscitou, nenhum documento lhes deu. E por quê? Porque eram homens que já morreram uma vez, e haviam de morrer outra, e quem morre antes da morte, não há mister mais doutrina para bem morrer.



O inferno e a condenação eterna (que é o paradeiro dos que morrem mal), chama-se no Apocalipse morte segunda. E faz menção ali S. João de certas almas, em quem a morte segunda não tem poder: In his secunda mors non habet potestatem (Ape. 20, 6). E que almas venturosas são estas, em quem não tem poder a morte segunda? Todos, enquanto estamos sujeitos à morte primeira, que é a morte temporal, estamos também arriscados à morte segunda, que é a morte eterna, porque todos nos podemos condenar e ir ao inferno. Que almas são logo estas privilegiadas que totalmente se isentam do poder e jurisdição da morte segunda? São as almas daqueles que com verdadeira resolução e perseverança souberam acabara vida antes da morte e morrer antes de morrer. Das mesmas palavras de S. João se colhe, se bem as consideramos. E se não, pergunto: Por que se chama a morte eterna precisa e determinadamente morte segunda, e não mais que segunda? Porque não pode ser morte senãodaqueles que uma só vez. Morte segunda refere-se à morte primeira, e supõe antes de si outra morte, mas uma só, e não mais que uma, porque se as mortes antecedentes fossem duas, já não seria morte segunda, senão morte terceira. E como os que morrem em vida morrem duas vezes, uma quando morrem, e outra antes de morrer, já não tem neles lugar morte segunda. Para quem morre uma só vez há no inferno morte segunda; para quem morre duas vezes, não há lá morte terceira. Por isso a que se chama segunda, não tem sobre eles poder: In his secunda mors non habet potestatem. Oh! ditosos aqueles, que para evitar o perigo da morte segunda, souberem meter outra morte diante da primeira!



Cristãos, e senhores meus, se quereis morrer bem (como é certo que quereis) não dei­xeis o morrer para a morte: morrei em vida; não deixeis o morrer para a enfermidade e para a cama: morrei na saúde, e em pé. E se quiserdes para esta grande empresa um corpo, ou hiero­glífico natural, não notado por Plínio ou Marco Varro, senão por autor divino e canônico, e vo-lo darei. Foi notar S. Judas Tadeu naquela sua admirável epístola, que as árvores morrem duas vezes:Arbores autumnales, infrutuosae, bis mortuae.[9] A primeira vez, morrem as árvo­res em pé, a segunda deitadas; a primeira, quando se secam; a segunda, quando caem. Platão disse que os homens são árvores às avessas, e eu acrescento que, se morrerem como as árvo­res, serão homens às direitas. Na árvore, enquanto lhe dura a vida, ou a verdura, tudo são galas, tudo pompa, tudo novidades; morre finalmente a árvore com o tempo a primeira vez, e daquele corpo tão formoso e vário, que vestiam as folhas, que guarneciam as flores, que enriqueciam os frutos, não se vê mais que um cadáver seco, triste e destroncado. Neste despojo de tudo o que tinha sido, presa ainda pelas raízes, e sustentando-se na terra, mas não da terra, espera a árvore em pé a última caída, e esta é a segunda morte, com que de todo acaba. Assim deve acabar antes de acabar, quem quer acabar bem. Quantas primaveras têm passado por nós, quantos verões, e quantos outonos, e pode ser que com menos fruto que folha e flores! O que fazem os anos nas árvores, bem o puderam já ter feito em muitos de nós os mesmos anos. E é bem que a razão e o desengano o faça em todos, pois são mais fracas as nossas raízes. Espere­mos mortos pela morte, e esperemo-la em pé, antes que ela nos deite na sepultura. Oh! ditosa sepultura a daqueles na qual se possa escrever com verdade o epitáfio vulgar do grande Esco­to: Semel sepultus, bis mortuus: Uma vez sepultado, e duas morto.[10]





§ IV



Segunda condição da morte: ser incerta. O pedido de Davi e a morte de Josias. Catão e o oráculo de Júpiter. Declarações de S. Paulo. O edito de Amã, condenando à morte os hebreus. S. Pedro e a incerteza da morte. O despacho de Davi poderia ser aten­dido por ele próprio.



Vencida assim esta primeira dificuldade de ser a morte uma, segue-se a segunda, não menos perigosa, nem menos terrível, que é o ser incerta. Certa a morte, porque todos certa e infalivelmente havemos de morrer; mas nessa mesma certeza, incerta, porque ninguém sabe o quando. Repartimos a vida em idades, em anos, em meses, em dias, em horas, mas todas estas partes são tão duvidosas e tão incertas, que não há idade tão florente, nem saúde tão robusta, nem vida tão bem regrada, que tenha um só momento seguro. Perplexo no meio desta incerteza, e temeroso dela, Davi fez esta petição a Deus: Notum fac mihi, Domi­ne, finem meum, et numerum dierum meorum, ut sciam quid desit mihi (SI. 38, 5): Senhor, não vos peço larga vida, mas estes dias poucos, ou muitos, que hei de viver, peço-vos que me digais quantos são, para saber o que me resta. — Assim o pediu Davi, mas é a lei da incerteza da morte tão indispensável, que nem a Davi o concedeu Deus. Era Davi aquele homem que com verdade dizia de si: Incerta et oculta sapientiae tuae manifestasti mihi,[11] e manifestando-lhe Deus todos seus segredos, e as outras coisas mais incertas e ocultas de sua providência, só o incerto e oculto de sua morte lhe não quis revelar. Tão reservado é só para Deus o certo desta incerteza.



Mas dado caso que Deus revelara a Davi a certeza da sua morte, ainda depois de reve­lada e certificada por Deus, digo que ficaria incerta. Temos o caso em outro rei não menos santo, nem menos favorecido de Deus que Davi. Havendo el-rei Josias feito grandes serviços a Deus, em observância e aumento de religião, prometeu-lhe o mesmo Deus em prêmio destas boas obras, que morreria em paz: Idcirco colligam te ad patres tuos, et colligeris ad sepul­chrum tuum in pace.[12] Muito contente Josias com esta revelação, e muito animado com este seguro divino, como mancebo que era de trinta e nove anos, desejoso de glória, arma exército contra os assírios, mete-se em campanha, e tanto que os dois exércitos estiveram à vista, põe-se na testa dos esquadrões como bastão na mão e o cartaz de Deus no peito. Eu hei de morrer na paz, seguro estou na guerra. Cerram nisto os esquadrões, trava-se a batalha, voam as setas, senão quando uma delas atravessa pelo coração do rei Josias, e cai morto. Morto el-rei? Não pode ser. Não tinha Josias uma revelação e um assinado de Deus, que havia de morrer em paz? Colligeris ad sepulchrum tuum in pace? Pois, como morre na guerra e na batalha? Aqui vereis qual é a incerteza da morte. É certo que Josias morreu na guerra; é certo que Deus lhe tinha prometido que havia de morrer em paz; é certo que a palavra de Deus não pode faltar, e no meio de todas estas certezas foi incerto o dia, incerto o lugar; e incerto o gênero de morte de que havia de morrer e morreu Josias. Mas como pode estar esta incerteza, e tantas incertezas, com a certeza infalível da palavra divina? Disse-o Davi nas mesmas palavras, com que pouco há fez a sua petição: Locutus sum in lingua mea: notum fac mihi, Domine, finem meum.[13] Quando eu pedi a Deus que me revelasse o fim de minha vida, falei na minha língua: Locutus sum in língua mea. E assim como Davi falou a Deus na sua língua, assim Deus falou a Josias na sua. A língua de Deus, não a entendem bem os homens, porque pode ter muitos sentidos. E que importa que tenha eu palavra de Deus, e que a palavra de Deus seja certa, se o sentido da mesma palavra de Deus pode ser incerto, como aqui foi? Por isso fala Deus de propósito com palavras de sentido duvidoso e incerto, ainda quando revela os futuros da morte, para que a certeza dela fique reservada sempre à sua sabedoria somente, e para nós seja sempre duvidosa, e sempre incerta.



Tal é, senhores, a incerteza da morte; mas na nossa mão está fazê-la certa, se nos resolvemos a acabar a vida antes de morrer. Que bem vem caindo neste lugar aquele dito verdadeiramente romano do vosso Catão. Estava ele na África, sustentando só, como bom cidadão, as partes da república contra César; estava também ali o famosíssimo oráculo de Júpiter, Amon. Disseram-lhe que o consultasse. E que responderia Catão? Respondeu mais sabiamente do que pudera responder o mesmo Júpiter: Me non oracula certum, sed mors cert facit: Do meu fim não me certificam os oráculos: o meu oráculo certo é a morte certa. Falou barbaramente como gentio, mas generosamente como estóico. Era dogma da seita estóica, nos perigos de morrer indignamente, tirar-se a si mesmos a vida antes da morte. Assim o fez Catão tomando a morte certa por suas próprias mãos, por antecipar a morte duvidosa, vindo às mãos de César. Melhor o cristão que o estóico. O estóico mata-se para que o não matem: o cristão morre para morrer. Morrer mal, para não morrer pior, como faz o estóico, parece valor e prudência, mas é temeridade e fraqueza. Morrer bem, para morrer melhor, como faz o cristão, é valor, e verdadeira prudência. E se o estóico morre uma morte certa, o cristão morre duas, também certas, porque na certeza da primeira, segura a incerte­za da segunda. Que se lhe dá logo ao cristão que a morte seja incerta, se ele, morrendo antes, a pode fazer certa.



Ouvi S. Paulo: Ego curro non quasi incertum (1 Cor. 9, 26): Eu passo a carreira da vida como os outros homens, mas não corro como eles, ao incerto, senão ao certo. — Alude o apóstolo aos jogos daquele tempo, em que os contendores corriam até certa baliza ou meta, incertos de quem havia chegar primeiro ou depois. A meta é a morte, a carreira é a vida. E por que diz Paulo que ele corria ao certo, e não ao incerto, como os demais? Porque os demais acabam a carreira quando chegam à meta; Paulo antes de chegar à meta, tinha já acabado a carreira. Os demais acabam a vida quando chegam à morte; Paulo tinha acabado a vida antes de morrer. O mesmo Apóstolo o disse, persistindo na mesma metáfora: Bonum certamen certavi, cursum consummavi (2 Tim. 4, 7): Já tenho vencido o certame, já tenho acabado a carreira. Já? Para bem vos seja, apóstolo sagrado: mas quando? Aqui está a dúvida. Disse isto S. Paulo na segunda epístola que escreveu a Timóteo, a qual, como nota o Cardeal Barônio, foi escrita no ano quinto de Nero, oito anos antes que o mesmo Nero lhe tirasse a cabeça. Pois se a S. Paulo lhe restavam ainda tantos anos de vida, e podia viver muitos mais, como diz que já tinha acabado a sua carreira: Cursum consummavi? Porque não esperou pela morte para acabar a vida: já tinha acabado a vida antes de morrer. E como tanto tempo antes podia dizer com verdade: Cursum consummavi, por isso disse também com a mesma verdade: Ego curro non quasi in incertum, porque já tinha feito certo o incerto da morte. Para quem acaba a carreira da vida quando morre, é a morte incerta; mas para quem a soube acabar antes de morrer, não é incerta, é certa.



E para que vejais quão certa é, notai que entre todas as mortes certas, só esta, com que acabamos a vida antes de morrer, tem infalível e total certeza. Todas as outras mortes, ou no ser, ou no modo, ou no tempo, têm suas incertezas; só esta em si, e em todas suas circunstâncias é certamente certa. Quando por traça de Amã se publicou edito de morte contra todos os hebreus que viviam nas cento e dezessete províncias sujeitas a el-rei Assuero, diz o texto sagrado que todo Israel clamou a Deus, vendo-se condenados sem remédio à morte certa: Omnis Israel clamavit ad Dominum, e o quod eis certa mors impen­deret (Est. 13, 18). Era certa esta morte, porque estava sentenciada; era certa, porque estava determinado o dia; e sobretudo era certa, porque os decretos dos reis, por lei inviolável dos persas e medos, eram irrevogáveis. Mas esta mesma morte tão certa, e que por tantas razões carecia de toda a defesa e remédio humano, alfim mostrou o efeito, que não tinha infalível certeza, porque, descoberto 6 engano e maldade de Amã pela rainha Ester, Assuero revo­gou o edito, e todos os que estavam condenados e sujeitos à morte ficaram livres e vivos (Est. 16). Tão incerta é a morte, ainda quando mais certa.



E se alguém me disser que era decreto humano e falível, e que por isso houve incerteza na morte certa, vamos a outra morte certa por decreto divino, e vereis que também nela pode haver circunstâncias de incerteza. Certus quod velox est depositio tabernaculi mei, secundum quod, et Dominus noster Jesus Christus significavit mihi (2 Pdr. 1, 14): Estou certo, diz S. Pedro na sua segunda epístola, estou certo que hei de morrer brevemente, porque assim mo significou o mesmo Cristo. — Pode haver maior certeza, nem mais bem provada? Não pode. Mas ainda assim pergun­tara eu a S. Pedro: Apóstolo e pontífice santo: a brevidade dessa mesma morte de que estais tão certo, saber-nos-eis dizer quão breve há de ser? Se será neste ano, ou no seguinte? Se será neste mês, ou em algum dos outros? Se será neste mesmo dia, e nesta mesma hora, e neste mesmo lugar em que estais escrevendo? Nada disto podia dizer, nem afirmar S. Pedro, porque debaixo daquela certeza particular, significada e declarada por Cristo, estava ainda encoberta e duvidosa, e igualmente infalível aquela outra incerteza geral, pronunciada pelo mesmo Cristo: Quia nescitis diem, neque horam.[14] De sorte que sabia S. Pedro que havia de morrer brevemente, mas o quando e onde, não o sabia; estava certo da morte e da brevidade; mas do dia e da hora não estava, nem podia estar certo; e esta é a certeza da morte que se acaba com a vida. Porém a morte em que se acaba a vida antes de morrer é tão certa em si e em todas as suas circunstâncias, que se eu me resolvo neste ponto (como devo resolver), não só sei com certeza o lugar e o dia, senão com certeza a hora, e com certeza o momento. E a razão desta diferença é a que notou Jó: Breves dies hominis sunt.• numerus mensium ejus apud te est.[15] O quando daquela morte, não o posso saber certamente, porque está em Deus; o quando de estoutra morte posso-o saber com toda a certeza, porque está em mim. Aquele está em Deus, porque depende só da sua vontade; este está em mini, porque a graça do mesmo Deus, que  nunca falta, depende da minha.



Agora me não espanto que Deus não deferisse apetição de Davi, porque o despacho, se ele quisesse, estava na sua mão. Que dizia Davi, e que pedia a Deus? Pedia que Deus lhe revelasse o fim de sua vida: Notum fac mihi Domine finem meum (SI. 38, 5). E para Davi, ou qualquer outro homem, sem ser profeta, saber o fim de sua vida, não é necessário que Deus lho revele. Se eu quero saber o fim de minha vida, ponha-lhe eu o fim, e logo o saberei. Então será verdadeiramente fim meu: Finem meum, porque será livre, e não necessário; será voluntário, e não forçoso; será da minha eleição e do meu merecimento; será, enfim, fim da minha vida, e não da vida que não é minha, porque só é minha a presente, e não a futura. Que mais pedia e queria Davi? Et numerum dierum meorum: queria saber a conta dos seus dias. Inútil desejo, e escusada petição. Pedia o que não importa nada, e deixava o que só importa. Não quero saber a conta aos dias da vida futura; quero saber conta, e tomar conta aos dias da vida passada. Não quero saber de Deus a conta dos dias que hei de viver; quero saber de mim a conta que hei de dar a Deus dos dias que tenho vivido. Esta é a necessária e verdadeira conta dos nossos dias. Finalmente a que fim pedia Davi esta revelação? Ut sciam quid destt mihi: Para saber, diz ele, o que me falta. — E que importa saberdes o que vos falta, se é melhor não o saber? Não quero saber da vida o que me falta; quero ignorar o que me sobeja. Quem sabe quando há de morrer, sabe os dias que lhe faltam; quem morre antes de morrer, ignora os dias que lhe sobejam, e esta ignorância é melhor que aquela ciência. Que maior felicidade na incerteza da morte, que sobejar-me a vida? Aos que acabam a vida com a morte, falta-lhes a vida; aos que acabam a vida antes de morrer, sobeja-lhes. E sequer estes sobejos da vida não os daremos de barato a Deus e a alma? Mas vamos à última dificuldade.





§V



O maior perigo da morte: ser momentânea. A morte, instante que se desata do tempo que foi, enão se ata com o tempo que há de ser O exemplo de Carlos Quinto, de Davi e de Jó. S.Antônioesua preparação para a morte. Meter tempo entre a vida e a morte.



A última dificuldade e o maior perigo e aperto da morte, é ser momentânea. Que coisa é morte? Momentum unde pendet eternitas: um momento donde pende a eternidade, ou por melhor dizer, as eternidades. — O momento é um, e as eternidades que dele pendem são duas: ou de ver a Deus para sempre, ou de carecer de Deus para sempre. É uma linha indivisível que divide este mundo do outro mundo; é um horizonte extremo, donde para cima se vê o hemis­fério do céu, e para baixo o do inferno; é um ponto preciso e resumido, em que se ajunta o fim de tudo o que acaba, e o princípio do que não há de acabar. Oh! que terrível ponto este, e mais terrível para os que nesta vida se chamam felizes. Ducunt in bonis dies suos, et in punto ad inferna descendunt.[16] Se este ponto tivera partes, fora menos temeroso, porque entre uma e outra pudera caber alguma esperança, alguma consolação, algum recurso, algum remédio, mas este ponto não tem partes, nem ata, ou se ata com partes, porque é o último. O instante da morte não é como os instantes da vida. Os instantes da vida, ainda que não têm partes, unem-se com partes, porque unem a parte do tempo passado com a parte do futuro. O instante da morte é um instante que se desata do tempo que foi, e não se ata como tempo que há de ser, porque já não há de haver tempo: Et tempus non erit amplius (Apc. 10, 6). Não vos parece que é terrível coisa ser a morte momentânea? Não vos parece que é terrível momento este? Pois eu vos digo, que nem é terrível, nem é momento, para quem souber fazer pé atrás a acabar a vida antes de morrer, porque ainda que a morte é momento, e não é tempo, quem acaba a vida antes de morrer, mete tempo entre a vida e a morte.



Não vos quero alegar para isto com autoridades de Jerônimo, ou Agostinho, nem com exemplos de Hilariões e Pacômios, senão como exemplo e com a autoridade de um homem de capa e espada, ou de espada sem capa, que é ainda mais. Entrou um soldado veterano a Carlos Quinto, e pediu-lhe licença, com um memorial, para deixar seu servi­ço e se retirar das armas. Admirou-se o imperador, e parecendo-lhe que seria desconten­tamento e pouca satisfação do tempo que havia servido, respondeu-lhe, chamando-o por seu nome, que ele conhecia muito bem o seu valor e o seu merecimento, que tinha na lembrança as batalhas em que se achara e as vitórias que lhe ajudara a ganhar, e que as mercês que lhe determinava fazer, lhas faria logo efetivas com grandes vantagens de posto, de honra, de fazenda. Oh! venturoso soldado com tal palavra, e de um príncipe que a sabia guardar! Mas era muito melhor, e muito maior a sua ventura. — Sacra e real majestade, disse, não são essas as mercês que quero, nem essas as vantagens que preten­do: o que só peço e desejo da grandeza da Vossa Majestade, é licença para me retirar, porque quero meter tempo entre a morte e a vida: Inter vitae negotia, et mortis diem oportere spatium intercedere,[17] diz o vosso, e nosso Lívio na História De Bello Belgi­co. E que vos parece que faria o César neste caso? Concedeu enternecido a licença, retirou-se ao gabinete, tornou a ler o memorial do soldado, e despachou-se a si mesmo. — Oh! soldado mais valente, mais guerreiro, mais generoso, mais prudente, e mais solda­do que eu! Tu até agora foste meu soldado, eu teu capitão: desde este ponto tu serás meu capitão, e eu teu soldado: quero seguir tua bandeira. — Assim discorreu consigo César, e assim o fez. Arrima o bastão, renuncia o império, despe a púrpura, e tirando a coroa imperial da cabeça, pôs a coroa a todas suas vitórias, porque saber morrer é a maior façanha. Resolveu-se animosamente Carlos a acabar ele primeiro a vida, antes que a morte o acabasse a ele. Recolheu-se, ou acolheu-se ao convento de Juste, meteu tempo entre a vida e a morte, e porque a primeira vez soube morrer imperador, a segunda morreu santo. Oh! generoso príncipe, e prudente general, que soubeste seguir e apren­der do teu soldado! Oh! valente e sábio soldado, que soubeste ensinar e vencer o maior general. Ambos tocaram a recolher a tempo, e por isso seguraram a maior vitória, por­que fizeram a seu tempo a retirada.



Estes são os exemplos, senhores, que vos prometi. E se porventura quereis outros mais antigos e mais sagrados, ouvi o de outro general também coroado, e de outro soldado igual­mente valoroso e sábio, a quem ele imitou e seguiu. Desenganado Davi, como vimos, de não poder alcançar de Deus o número que lhe restava de seus dias, e o fim e o termo certo de sua vida, reformou o memorial, e pediu assim nas últimas palavras do mesmo salmo: Remitte mihi, ut refrigerer priusquam abeam, et amplius non ero (SI. 38, 14): Já que, Senhor, não sois servido que eu saiba a certeza de minha morte, e os dias que na vossa Providência me tendes determinado de vida, ao menos vos peço que me concedais algum espaço de quietação e sossego, em que possa meter tempo entre a vida e a morte: Sine me refrigerari et quiescere priusquam moruar, et non existam in vivis, sic enfim postea placide exibo ex hac vita, et sine terroribus conscientiae, qui tunc exoriri solent, comenta Genebrardo.[18] De maneira que, de­senganado Davi, mudou e melhorou de pensamento, e a sua última resolução foi segurar o estreito passo e momento da morte, com meter tempo entre ela e a vida. E de quem aprendeu Davi, de quem aprendeu o rei, general dos exércitos de Deus, esta lição? Aprendeu-a daquele famoso soldado, que pela experiência de suas batalhas dizia: Militia est hominis vita super terram. [19] Quase pelas mesmas palavras de Davi, o tinha já dito e pedido Jó: Nunquid non paucitas dierum meorum finietur brevi? Dimitte me ut plangam paululum dolorem meum, antequam vaiam, et non revertar.[20] Os dias da minha vida, diz Jó, ou eu queira, ou não queira, hão-se de acabar brevemente. O que pois vos peço, Senhor, é que antes da morte me concedais algum tempo, em que chore meus pecados, em que trate só de compor a minha consciência e aparelhar a minha alma. Vede quão conformes foram nesta galharda resolução o soldado primeiro, e o general depois. Jó tinha dito: Antequam vadam, et non revertar, Davi disse: Priusquam abeam, et amplius non ero. Um diz prius, outro diz ante, e nenhum deles se atreveu a deixar a morte para a morte; ambos trataram de ter tempo, e meter tempo entre a morte e a vida.



Mas quem era este general, quem era este soldado? Este Davi e este Jó, que homens eram? Oh! miséria e confusão de nosso descuido e de nossa pouca fé! Davi era aquele homem que, sendo ungido por Deus, quis antes perdoar a seu maior inimigo, que pôr na cabeça a coroa e empunhar o cetro (1 Rs. 24, 7); era aquele que, depois de ser rei, tinha entre noite e dia sete horas de oração, trazendo debaixo da púrpura cingido o cilício, e domando ou humilhando, como ele dizia, seu corpo com perpétuo jejum (SI. 34, 13); aquele que dos despojos de suas vitórias ajuntava tesouros não para si, eparaavaidade, senão para a fábrica do Templo (2 Rs. 7); aquele que, sendo leigo, ordenouocanto eclesiástico (2 Par. 7, 6), distinguiu os ministros, reformou as cerimônias, e pôs em perfeição todo o culto divino e coisas sagradas (1 Par. 23, 3); aquele que, se cometeu um pecado (3 Rs. 7, 51), ainda depois de absolto e perdoado, o chorou com rio de lágrimas por todos os dias e noites de sua vida (SI. 41,4); aquele finalmente de quem disse o mesmo Deus que tinha achado nele um homem à medida do seu coração (AL 13, 22). Este era Davi. EJó, quem era? O espelho da paciência, a coluna da constãn­cia, a regra da conformidade com a vontade divina, aquele a quem Deus pôs em campo contra todo o poder, astúcias e máquinas do inferno (Jó 1, 12); aquele que na próspera e adversa fortuna, com a mesma igualdade de ânimo, recebia da mão de Deus os bens, e lhe agradecia os males (Jó 2, 10); aquele com quem nasceu e crescia juntamente com a idade, a compaixão dos trabalhos alheios, a misericórdia, a piedade com todos (Jó 29,15); aquele que, como ele dizia, era os olhos do cego, os pés do manco, o pai dos órfaos, o amparo das viúvas, o remédio dos necessitados, e que nunca comeu uma fatia de pão que não partisse dela com os pobres (Jó 31,17) ; aquele finalmente a quem canonizou o mesmo Deus, não só por inocente, mas pelo maior justo e santo de todo o mundo (Jó 1, 8). Este era Jó e este Davi, e cada um deles muito mais do que eu tenho dito, e do que se pode dizer. Agora pergunto: E se qualquer de nós se achara com a vida de um destes dois homens, não se atrevera a esperar pela morte muito confiadamente? Se vivemos como os que vivem e como os que vemos morrer, certo é que sim. E contudo, nem Davi, nem Jó, com tanto cabedal de virtudes, com tantos tesouros de mere­cimento, e o que é mais, com tantos testemunhos do céu, tiveram confiança para que os tomasse de repente o momento da morte: ambos pediram tempo a Deus para meter tempo entre amo te e a vida.



Mas para que me dilato eu em buscar exemplos estranhos, quando tenho presente em sua casa, e no seu dia, o mais nosso, e mais admirável de todos. Acabou Santo Antônio a vida em tempo, que a idade lhe prometia ainda muitos anos, porque não tinha mais de trinta e seis. E que fez, muitos dias antes? Despede-se de todas as ocupações, ainda que tão santas e tão suas; deixa a cidade, vai-se a um deserto, e ali só com Deus e consigo, dispôs muito devagar e muito de propósito para quando o Senhor o chamasse. Verdadeiramente que nenhuma consideração me faz fazer maior conceito da morte, nem me causa maior horror daquele perigoso momento, que esta última ação de Santo Antônio. Que corte Santo Antônio o fio ordinário de sua vida, e que sendo a sua vida qual era, faça mudança de vida para esperar pela morte! Dizei-me, Santo meu, que vida era a vossa? Não era a mais ino­cente, a mais pura, a mais rigorosa? O vosso vestido, não era um cilício inteiro atado com uma corda? A vossa mesa, não era um perpétuo jejum, e uma pobre e continuada abstinên­cia? A vossa cama, não era uma dura tábua, ou a terra nua? Não passáveis a maior parte da noite em oração e contemplação dos mistérios divinos? Os dias, não gastáveis em pregar, em converter pecadores, em reduzir hereges? Os vossos pensamentos, não eram sempre do céu e de Deus? As vossas palavras, não eram raios de luz e de fogo, com que alumiáveis entendimentos e abrasáveis corações? As vossas obras, não eram saúde a enfermos, vista a cegos, vida a mortos, finalmente prodígios e milagres estupendos em testemunho da fé que pregáveis? Pois com esta vida, ainda fugis do mundo para um deserto? Com esta vida, ainda vos retirais de vós para vós, e para vos unirdes mais com Deus? Com esta vida, ainda vos não atreveis a morrer? Ainda quereis acabar esta vida e fazer outra? Ainda quereis meter tempo entre esta vida e a morte? Pare o discurso nesta admiração, porque, nem eu seicomo ir por diante, nem haverá quem deseje maior, mais apertada e mais temerosa prova de quão necessária seja esta antecipada prevenção para quem sabe que há de morrer, e o que é morrer.



Este é o único antídoto contra o veneno da morte; este é o único e só eficaz remédio contra todos seus perigos e dificuldades: acabar a vida antes que a vida se acabe. Se a morte é terrível por ser uma, com esta prevenção serão duas; se é terrível por ser incerta, com esta prevenção será certa; se é terrível ser momentânea, com esta prevenção será tempo, e dará tempo. Desta maneira faremos da mesma víbora a triaga, e o mesmo pó que somos, será o corretivo do pó que havemos de ser: Pulvis es, in pulverem reverteris.





§ VI



Quantos mortos que ainda lhes faltam por viver muitos anos! Propósitos: À imita­ção de Elias, seguindo o conselho do Espírito Santo, demos a Deus o tempo que sempre é seu, enquanto é também nosso, e não quando já não temos parte nele.



Parece-me, senhores meus, que tenho satisfeito ao meu argumento, e tanto em co­mum, como em cada uma das suas partes, demonstrado a verdade dele, mais pela evidência da matéria que pela força das razões, menos necessárias a um auditório de tanto juízo e letras. Para o que se deve colher desta demonstração, quisera eu que subisse agora a este lugar quem com diferente espírito e eficácia perorasse. Mas já que hei de ser eu, ajudai-me a pedir de novo à divina bondade o favor e auxílio de sua graça, que para matéria de tanto peso nos é necessária.



Tudo o que temos dito e ouvido, é o que nos ensina nas Escrituras a fé, nos santos o exemplo, e ainda nos gentios o lume e razão natural. Mas quando eu vejo e considero o modo com que comumente vivemos cristãos, e o modo com que morrem, acho que em vez de acabarmos a vida antes da morte, ainda depois da morte continuamos a vida. Parece paradoxo, mas é experiência de cada dia. Que morto há nestas sepulturas, e mais nas mais altas, em quem a morte se não antecipasse à vida? Que morto há que não esperasse e presumisse que havia de viver mais do que viveu? Dum adhuc ordirer, succidit me.[21] Nós urdimos a teia, a vida a tece, a morte a corta; e quem há, ou quem houve, a quem não sobejasse depois da morte muita parte da urdidura? É possível, dizia Ezequias, quando o profeta o avisou para morrer, é possível que hei de acabar a vida no meio dos meus dias: In dimidio dierum meorum vadam ad portas inferi [22]. E quem lhe disse a este enganado rei, que aquele era o meio, e não o fim de seus dias? Disse-lho a sua imaginação e a sua espe­rança. Cuidava que havia de viver oitenta anos, e a morte veio aos quarenta. Eis aqui como continuava e estendia a vida quarenta anos além da morte. Quantos estão já debaixo da terra, que ainda lhes faltam por viver muitos anos! Ouçamos a um destes. Anima mea, babes multa bona in annos plurimos (Lc. 12, 19): Alma minha, tens muitos bens para muitos anos. Comede, bibe, epulare (Lc. ibid. 20): Leva-te boa vida, regala-te, gasta larga­mente e a teu prazer, já que tiveste tão boa fortuna. — Não tinha acabado de pronunciar estas palavras, quando ouviu uma voz que lhe dizia: Stulte, hac nocte animam tuam repetent a te (Lc. ibid.): Néscio, ignorante, insensato, este dia que passou foi o último de tua vida, e nesta mesma noite hás de morrer. — Morreu naquela mesma noite, e os muitos anos que se prometia de vida: In annos plurimos, que foi feito deles? Ainda se continuaram e foram correndo em vão, depois da sua morte. Verdadeiramente néscio, e pior que néscio, stulte. Os anos de que fazias conta, não eram teus, e os bens que eram teus, serão de outrem. Mas ainda que os anos não foram teus para a vida, serão teus para a conta, porque hás de dar conta a Deus, do modo com que fazias conta de os viver. Quanto melhor conselho fora acabar antes da morte os anos que vivestes, para o remédio, que continuar depois da morte os anos que não viveste, para o castigo!



Agora acabo eu de entender aquele dificultoso conselho do Espírito Santo: Ne moriaris in tempore non tuo (Eclo. 7, 18): Não morras no tempo que não é teu. Ne moriaris: Não morras? Logo, na minha mão está a morte. In tempore non tuo: No tempo que não é teu? Logo, há tempo que é meu, e tempo que não é meu. Assim é. Mas qual é o tempo meu, em que é bem que morra, e qual o tempo não meu, em que é bem que não morra? O tempo meu é o tempo antes da morte; o tempo não meu é o tempo depois da morte. E guardar, ou esperar a morte para o tempo depois da morte, que não é tempo meu, é ignorância, é loucura, é estultícia, como a deste néscio: stulte; mas antecipar a morte, e morrer antes de se acabar a vida, que é o tempo meu, esse é o prudente e o sábio, e o bem entendido morrer. E isto é o que nos aconselha quem só tem na sua mão a morte e a vida: Ne moriaris in tempore non tuo.



Quem haverá logo, se tem juízo, que se não persuada a um tão justo, tão necessário e tão útil partido, como acabar a vida antes da morte? Faça a nossa alma como nosso corpo, e o nosso corpo com a nossa alma, o concerto que fez Elias. Ia Elias fugindo pelo deserto à perseguição da Rainha Jesabel, que o queria matar, e vendo quão dificultosa coisa era escapar à fúria de uma mulher poderosa e irada, diz o texto que pediu a morte à sua alma: Petivi animae suae ut moreretur (3 Rs. 19, 4). Alma minha, morramos; já que se há de morrer por força, morramos por vontade. Isto pedia o corpo à alma, e isto deve também pedir a alma ao corpo, porque ambos vão igualmente interessados no mesmo partido. Alma minha, diga o corpo à alma; corpo meu, diga a alma ao corpo: Se havemos de morrer depois por força e com perigo, morramos agora e logo, de grado e com segurança. Eu bem vejo que o vir facilmente neste concerto, é mais para os desertos que para as cortes. Na corte fugia Elias da morte; no deserto chamava por ela. Mas se uma tal resolução no deserto é mais fácil, na corte é mais necessária, por que nas cortes é muito mais arriscado o esperar pela morte para acabar a vida.



Suposto pois que o ditame é certo, conveniente e forçoso, desçamos à prática dele, sem a qual tudo o demais é nada. Isto de acabar a vida antes da morte, como se há de fazer? Respondo que fazendo resolutamente por própria eleição, na morte antecipada e voluntária, tudo aquilo que se faz prudente e cristãmente na morte forçosaeprecisa. Que faz um cristão quando o avisam para morrer? Primeiramente (que isto deve ser o primeiro) confessa-se geralmente de toda sua vida, arrepende-se de seus pecados, compõe do melhor modo que pode suas dívidas, faz seu testamen­to, deixa sufrágios pela sua alma, põe-na inteiramente nas mãos do padre espiritual, abraça-se com um Cristo crucificado, e dizendo como ele: Consummatum est (Jo. 19, 30), espera pela morte. Este é o mais feliz modo de morrer qúe se usa. Mas como é forçoso e não voluntário, e aqueles poucos e perturbados atos que então se fazem, não bastam para desfazer os maus hábitos da vida passada, assim como a contrição é pouco verdadeira e pouco firme, e as tentações então mais fortes, assim a morte é pouco segura e muito arriscada. A contrição, diz Santo Agostinho, na enfermidade é enferma, e na morte, diz o mesmo santo, temo muito que seja morta. Deixemos logo os pecados quando nós os deixamos, e não quando eles nos deixam a nós, e acabemos a vida quando ainda podemos viver, e não quando ela se tem acabado. Que damos a Deus, quando ele no-la tira? Demos a vida a Deus, enquanto ele no-la dá; demos a Deus o tempo que sempre é seu, enquanto é também nosso, e não quando já não temos parte nele. Que propósitos são aqueles de não ofender mais a Deus, se eu já não tenho lugar de o ofender? A confissão nos tratos não é jurídica; há-se de ratificar fora dela para fazer fé; e pois se não pode ratificar depois, ratifique-se antes. A fazenda que se há de alijar ao mar no meio da tempestade, não é mais são conselho que fique no porto, e com ganância? Se eu posso ser o testador do meu, e mais o testamenteiro, porque o não serei? Se o meu testamento há de dizer: Item deixo, por que não dirá: Item levo? Não é melhor levar obras pias, que deixar demandas? Se se há de dizer de mim em dúvida: Fulano que Deus tem, não é melhor que seja desde logo, e com certeza?





§VII



E os negócios e gostos da vida? Só para os que acabaram a vida antes da morte o mundo é paraíso na terra, como para Henoc e Elias. De quantas sem-razões se livra quem está já morto! Quais são os que seguramente gozam de paz e descanso?



Para a outra vida ninguém haverá (se crê que há outra vida) que não tenha por bom este conselho, e que só ele no negócio de maior importância é o verdadeiro, o sólido, o seguro. Mas, que diremos ao amor deste mundo, a que tão pegados estamos? É possível que de um golpe hei de cortar por todos os gostos e interesses da vida? Aqueles meus pensamentos, aqueles meus desenhos, aquelas minhas esperanças, com tudo isto hei de acabar desde logo, e para sempre, e por minha vontade, e que hei de tomar a morte por minhas mãos, antes que ela me mate, e quando ainda pudera lograr do mundo e da mesma vida muitos anos? Sobretudo, tenho muitos negócios em aberto, muitas dependências, muitos embaraços: comporei primeiro minhas coisas, e depois que tiver acabado com elas, então tomarei esse conselho, e tratarei de acabar a vida antes da morte. Eis aqui o engano e a tentação com que o demônio nos vence depois de convencidos, e com que o inferno está cheio de bons propósitos.



Primeiramente estes vossos negócios e embaraços não devem de ser tão grandes, e de tanto peso, como os de Carlos Quinto; mas dado que o fossem, e ainda maiores, se no meio de todos eles, e neste mesmo dia viesse a febre maligna, que havíeis de fazer? Não havíeis de cortar por tudo, e tratar de vossa alma? Pois o que havia de fazer a febre, não o fará a razão? Se hoje tendes muitos embaraços, amanhã haveis de ter muitos mais, e nin­guém se desembaraçou nunca desta meada senão cortando-a. E quanto aos anos que ainda podeis ter e lograr de vida, pergunte-se cada um a si mesmo quantos anos tem? Eu quantos anos tenho vivido? Sessenta. E quantos morreram de quarenta? Quantos anos tenho vivi­do? Quarenta. E quantos morreram de vinte? Quantos anos tenho vivido? Vinte. E quantos morreram de dez e de dois, e de um, e de nenhum? De utero translatus ad tumulum.[23] E se eu tenho vivido mais que tantos, que injúria faço à minha vida em a querer acabar? Que injúria faço aos meus anos em renunciar aos poucos e duvidosos, pelos seguros e eternos?



Finalmente, se tanto amo, e tão pegado estou aos dias da vida presente, por isso mesmo os devo dar a Deus, para que ele me não tire os que ainda naturalmente posso viver, segundo aquela regra geral da providência sua, e aquele justo castigo dos que os gastam mal: Viri sanguinum, et dolosi, non dimidiabunt dies suos.[24]



Só resta o mais dificultoso laço de desatar, ou cortar, que são os que vós chamais gostos da vida, os quais, se ela se acaba, também acabam: Post mortem nulla voluptas.[25] Ajuda-me Deus a vos desenganar deste ponto, e seja ele, como é, o último. Se nesta vida (vede o que digo) se nesta vida, e neste miserável mundo, cheio, para todos os estados, de tantos pesares, pode haver gosto algum puro e sincero, só os que acabam a vida antes de morrer a gozam. Para todos os outros é a vida e o mundo, vale de lágrimas; só para os que acabaram a vida antes da morte, é paraíso na terra. Dois homens houve só neste mundo que verdadeira e realmente acabaram a vida antes da morte: Henoc e Elias. Ambos acabaram esta vida há muitos anos, e ambos hão de morrer ainda no fim do mundo. E onde estão estes dois homens que acabaram a vida antes de morrer? Ambos, e só eles, estão no paraíso terreal, e com grande mistério. Porque se há e pode haver paraíso na terra, se há e pode haver paraíso neste mundo e nesta vida, só os que acabam a vida antes de morrer o logram. Oh! que vida tão quieta! Oh! que vida tão descansada! Oh! que vida tão feliz e tão livre de todas as perturbações, de todos os desgostos, de todos os infortúnios do mundo! Depois que Henoc acabou a vida no mundo, sucedeu logo nele a maior calamidade que nunca se viu, nem verá: o dilúvio universal. O mundo grande estava já afogado debaixo daquele imenso mar sem porto nem ribeira; o mundo pequeno, metido em uma arca, já subindo às estrelas, já descendo aos abismos, sem piloto, sem leme, sem luz, flutuava atonitamente naquela tempestade. Os montes soçobrados, as cidades sumidas, o céu de todas as partes chovendo lanças e fulminando raios. E só Henoc no meio de tudo isto, como estava? Sem perigo, sem temor, sem cuidado. Porque ainda que lhe chegassem lá os ecos dos trovões e o ruído da tormenta, nada disto lhe tocava. Eu já acabei com o mundo, o mundo já acabou para mim; que importa que se acabe para os outros? Lá se avenham com os seus trabalhos, pois vivem, que eu já acabei a vida. Neste tempo não era ainda nascido Elias. Nasceu Elias, viveu anos, e antes de morrer acabou a vida do mesmo modo. Mas, que não padeceu o mundo e a terra onde Elias vivia, depois deste seu apartamento? Veio contra Samaria, Senaquerib e Salmanasar; veio contra Jerusalém, Nabucodonosor: tudo guerra, tudo fomes, tudo batalhas, ruínas, incêndios, cativeiros, desterros. As dez tribos de Israel levadas aos assírios, donde nunca tornaram; as duas tribos de Judá e Benjamim, transmigradas à Babilônia, donde voltaram despedaçadas depois de setenta anos. Porém Elias, que noutro tempo o comia tanto o zelo e amor da pátria, estava-se no seu paraíso em suma paz, em suma quietação, em sumo sossego, em suma felicidade. Volte-se o mundo debaixo para cima, reine Joaquim, ou reine Salmanasar, reine Nabuco, ou reine Ciro, vença Jerusalém, ou vença Babilônia, vão uns e tornem, e vão outros para não tornar: que se lhe dá disso Elias? Quem tem acabado a vida, de todos esses vaivéns da fortuna está seguro.



O mesmo acontece, senhores meus, e o mesmo experimenta todo aquele que deve­ras se resolve a deixar o mundo ao mundo, e acabar a vida antes da morte. Não são neces­sários para isso arrebatamentos, como os de Henoc, nem carros de fogo, como o de Elias, senão uma valente resolução. Quem assim se resolve, goza como Henoc e Elias todos os privilégios de morto. Corra o mundo por onde correr, nenhuma coisa lhe empece, nem lhe dá cuidado. Um dos professores deste estado foi, como vimos, S. Paulo, e por isso, ainda vivo, dizia: Vivo autem, jam non ego (Gál. 2, 20). E que quer dizer: Eu vivo, mas já não sou eu? Quer dizer, diz S. Bernardo: Ad alia quidem omnia mortuus sum: non sentio, non attendo, non curo: Todas as coisas deste mundo são para mim como para os mortos; nem as sinto, nem me dão cuidado, nem faço mais caso delas, que se não foram; porque se elas ainda são, eu já não sou. Considerai as imunidades dos mortos, e vereis o descanso de que gozam e os trabalhos de que se livram os que antecipam a morte. Vieram ao Calvário os executores de Pilatos para quebrar as canelas aos crucificados, e assim o fizeram a Dimas e Gestas com grandes dores daquele tormento, porque estavam ainda vivos (Jo. 19, 31 s.).Ad Jesum autem cum venissent (Ibid 32), mas quando chegaram a Cristo, Ut viderunt eum jam mortuum, non fregerunt ejus crura: Como viram que estava já morto, não executaram nele aquela crueldade. — De quantos quebrantamentos, de quantas moléstias, de quantas sem-razões se livra quem está já morto! O epitáfio que eu pusera a um morto destes, é aquele verso de Davi:



Inter mortuos líber (SI. 87, 6):



Entre os mortos livre. Livre dos cuidados do mundo, porque já está fora do mundo. Livre de emulações e invejas, porque a ninguém faz oposição. Livre de esperanças e temo­res, porque nenhuma coisa deseja. Livre de contingências e mudanças, porque se isentou da jurisdição da fortuna. Livre dos homens, que é a mais dificultosa liberdade, porque se descativou de si mesmo. Livre finalmente de todos os pesares e moléstias e inquietações da vida, porque já é morto.



A todos os mortos se canta piamente por costume: Requiescant in pace. Mas esta paz e este descanso, só o logram seguramente os que morreram antes de morrer. Vede-o no mesmo texto de Davi, donde a Igreja tomou aquelas palavras: In pace in idipsum, dormiam et requiescam:[26] Morrerei e descansarei em paz para isso mesmo: In idipsum. Nesta cláu­sula in idipsum está o mistério, que sendo a sentença tão clara, a faz dificultosa, mas admi­rável. Que quer dizer: Morrerei e descansarei em paz para isso mesmo? Se dissera: Morre­rei para descansar em paz, bem se entendia; mas Morrerei e descansarei em paz para isso mesmo? Se há de morrer e descansar em paz para isso mesmo, há de morrer e descansar em paz, para morrer e descansar em paz? Assim é, e esse foi o profundo pensamento de Davi. Como se dissera: Eu quero morrer e descansar em paz na vida. E por que, ou para quê? Para isso mesmo; para morrer e descansar em paz na morte: In pace in idipsum, dormiam et requiescam. Por isso, com grande propriedade, significou o morrer pela frase de dormir: dormiam, porque o sono é morte em vida. Daqui se seguem duas conseqüências últimas, ambas notáveis e de grande consolação para os que morrem antes de morrer. A primeira, que só eles, como há pouco dissemos, gozam seguramente de paz e descanso. A segunda, que da paz e descanso desta morte, se segue também seguramente a paz e descanso da outra, que é o argumento de todo o nosso discurso. Os que morrem quando morrem, perdem o descanso da vida, e não conseguem ordinariamente o da eternidade, porque passam de uns trabalhos a outros maiores. Assim diziam no inferno aqueles miseráveis, que já tinham sido felizes: Lassati sumus in via iniquitatis:[27] Chegamos cansados ao inferno. — Ao inferno, e cansados, porque lá não tivemos descanso, e cá teremos tormentos eternos. Pelo contrário os que morrem antes de morrer, morrem descansados, e morrem para descansar: In pace in idipsum, dormiam et requiescam. Oh! que paz, oh! que descanso para a vida e para a morte! Creio que ninguém haverá, se tem juízo, que se não resolva desde logo a viver e morrer assim, ou a morrer assim para morrer assim. Acabando desta maneira a vida, espe­raremos confiadamente a morte, e por benefício do pó que somos: Pulvis es, não temere­mos o pó que havemos de ser: In pulverem reverteris.



LAUS DEO























































































































































































































































[1] Tu és pó, e em pó te hás de tornar (Gên. 3, 19).



[2] Quando os fados o querem.



[3] Sêneca, Ep. 32.



[4] Está decretado aos homens que morram uma só vez (Hebr. 9, 27).



[5] Multiplicarei os teus trabalhos (Gên. 3, 16).



[6] Na guerra não se pode errar duas vezes.



[7] Rirá no último dia (Prov. 31, 25).



[8] Tu lhe demarcaste os limites, dos quais ele não pode passar (Jó 14, 5).



[9] Árvores do outono, sem fruto, duas vezes mortas (Jud. 12).



[10] Extat. hoc epitaph. in Lib. Sales Musarum. Quidquid sit de veritate historiae, vide Spondanum an. 1308.



[11] E me revelaste o segredo e o escondido do teu saber (SI. 50, 8).



[12] Por isso eu te farei descansar com teus pais, e serás sepultado em paz no teu sepulcro (4 Rs. 22, 20).



[13] Falei com a minha língua: Faze-me conhecer, Senhor, o meu fim (SI. 38, 5).



[14] Porque não sabeis o dia nem a hora (Mt. 25, 13).



[15] Breves são os dias do homem: em teu poder está o número dos seus meses (Jó 14, 5).



[16] Passam os seus dias em prazeres. e num momento descem à sepultura (Jó 21, 13).



[17] É necessário meter tempo entre os afazeres da vida e o dia da morte.



[18] Dai-me quietação e sossego antes de morrer, e assim sairei desta vida em paz, sem os terrores de consciência que então costumam aparecer.



[19] A vida do homem sobre a terra é uma guerra (Jó 7, 1).



[20] Porventura o pequeno número de meus dias não acabará em breve? Deixa-me pois que eu chore um pouco a minha dor, antes que vá para não tornar (Jó 10, 20).



[21] Quando eu ainda a estava urdindo, ele me cortou (Is. 38, 12).



[22] Na metade de meus dias irei para as portas do inferno (JO 38, 10).



[23] Desde o ventre trasladado para a sepultura (Jó 10, 19).



[24] Homens sanguinários e enganadores não chegarão à metade de seus dias (SI. 54, 24).



[25] Depois da morte não há mais prazer.



[26] Em paz dormirei nele mesmo, e repousarei (SI. 4, 9).



[27] Cansamo-nos no caminho da iniqüidade (Sab. 5, 7).

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