Vestibular: A Relíquia (Eça de Queiroz) - resumo

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A Relíquia começa com a apresentação do narrador e protagonista da história, Teodorico Raposo, que busca explicar ao leitor o que o motivou a escrever suas memórias. Ele nos diz que a principal motivação está no facto de que tanto ele como seu cunhado, Crispim, acreditarem que aquelas memórias contém "uma lição lúcida e forte" da vida, sendo merecedoras da imortalidade que só "a literatura propicia". A narração se concentra numa viagem feita por Teodorico ao Egito e à Palestina, logo após uma decepção amorosa. Buscando fugir ao modelo de "guia de viagem", Teodorico nos conta com suposta "sobriedade e sinceridade" os casos que provocaram mudanças significativas em sua vida, principalmente no que tange à herança que supunha merecer.
Na verdade a narrativa de Teodorico possui um outro objetivo, a saber, promover uma correção no livro que seu amigo letrado, Topsius, que participara daquela viagem, escrevera sobre Jerusalém. Naquela obra, intitulada "Jerusalém Passeada e Comentada", Topsius afirmava que Teodorico levava em dois embrulhos de papel os "restos de seus antepassados". Tal afirmação preocupava Teodorico em relação à burguesia local, já que isso poderia acarretar problemas para o futuro e que só por meio da burguesia se tinha acesso às "coisas boas da vida". Teodorico desejava então explicar a natureza e o verdadeiro conteúdo daqueles pacotes.
Teodorico acaba por nos contar não somente o que sucedera na malfadada viagem mas também vários aspectos relativos a sua vida anteriores à viagem, como por exemplo a história do encontro de seus pais, ou ainda, o momento depois de toda a viagem em que se decidira pela escrita de suas experiências de vida.
Teodorico começa por nos falar de seu avô paterno, Rufino da Conceição, padre, teólogo e autor duma obra chamada "Duma Devota Vida de Santa Filomena". Depois apresenta-nos sua avó, Filomena Raposo, doceira, conhecida por "Repolhuda", que vivia em Évora com o filho, Rufino da Assunção Raposo, afilhado de Nossa Senhora da Assunção, pai de Teodorico.
Rufino trabalhava no correio e escrevia, de vez em quando, no periódico "Farol do Alentejo". Em 1853, durante a vista de um importante bispo à Évora (Dom Gaspar de Lorena), Rufino escreveu um artigo laudatório à presença de "tão insigne prelado" e com isso ganho a simpatia do bispo. Simpatia que aumentou ainda mais quando o bispo soube que Rufino era "afilhado carnal" do Padre Rufino da Conceição, seu amigo de estudos quando estudavam ainda no seminário. O Bispo presentou o pai de Teodorico com um relógio de prata e o nomeou "escandalosamente, diretor da alfândega de Viana".
Trabalhando em Viana, o pai de Teodorico conheceu um rico cavalheiro de Lisboa, o comendador G.Godinho, que passava o verão em sua quinta, o Mosteiro, com duas sobrinhas: a devota D.Maria do Patrocínio e a gordinha e trigueira D. Rosa. Rufino da Conceição habituou-se a tocar sua viola para D.Rosa e amor entre os dois não demorou a acontecer. Assim, namoraram e se casaram.
Teodorico então nos conta que ele nasceu numa tarde sexta-feira da paixão e que Dona Rosa, sua mãe, morreu na manhã seguinte, sábado de aleluia. Ficou sendo criado pelo pai, distante do avô materno, o influente comendador G.Godinho e de sua tia, Dona Maria do Patrocínio. O avô materno do menino morreu logo depois de alguns anos e pouco tempo depois, seu pai, de modo que ficou sendo órfão de pai e mãe. Aos sete anos, sua tia, Dona Maria do Patrocínio mandou um empregado, o Sr. Matias, buscar o pequeno Teodorico em Viana.
Pede à tia que lhe financie uma viagem a Paris, mas esta recusa-se terminantemente afirmando que Paris era a cidade do vício e da perdição. Teodorico pede, então, para fazer uma peregrinação à Terra Santa. A tia consente e pede que lhe traga uma recordação.
O sobrinho leviano parte e, na viagem, envolve-se com uma inglesa – Mary – que, como recordação dos momentos que passaram juntos, lhe dá um embrulho com a sua camisa de noite. Chegado à Palestina, Raposo continua a sua vida profana e amoral. Mas, aí, tem um sonho no qual se imagina a assistir a todo o processo de Jesus. Esta é a forma que Eça encontra para negar a verdade da ressurreição. Antes de regressar, Teodorico lembra-se do pedido da tia e corta uns ramos de um arbusto e tece com estes uma coroa, que embrulhou e pôs na sua bagagem. Entretanto, uma pobre mendiga pede-lhe esmola e ele deu-lhe o embrulho que (pensava ele) continha a camisa de Mary. Chegado a Lisboa, relata, hipocritamente, à tia todas as penitências e jejuns que fizera durante a peregrinação e oferece-lhe o embrulho, dizendo que este continha a coroa de espinhos.
A abertura da suposta relíquia faz-se perante uma imensa audiência de sacerdotes e beatas, num ambiente de ansiedade. Qual o espanto de todos quando, em vez do sagrado objecto, surge a camisa de noite da inglesinha. Este insólito episódio vale a Teodorico a expulsão de casa da tia e a perda da fortuna que ambicionava. Para sobreviver, Raposo passa, então, a vender relíquias da Terra Santa, que fabrica em grandes quantidades, acabando por arruinar o negócio. Acaba por compreender a inutilidade da falsidade e da mentira quando tem uma visão de Cristo.
Arranja um emprego, graças a um amigo do colégio e casa com a irmã deste. Parecia regenerado da hipocrisia que o caracterizava, mas ao saber que o padre Negrão – um dos clérigos que costumava frequentar a casa de Dona Patrocínio – herdara desta a Quinta onde ele nascera e que este era amante de Amélia, uma mulher com quem se relacionara em tempos e que o havia traído, Teodorico apercebe-se que tinha perdido a choruda fortuna por não ter sido ainda mais hipócrita e cínico. Se naquele dia tivesse tido a coragem de declarar que aquela camisa pertencia a Santa Maria Madalena, teria ficado bem visto entre os presentes e herdado a fortuna. (in wikipedia.org)

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Amor (conto) - Clarice Lispector

Conto de leitura obrigatória, exigido no vestibular da UNICAMP.
Questões sobre o conto "Amor"

Amor
Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

 Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

 No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

 Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

 O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

 O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

 Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

 Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

 Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

 Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

 A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

 De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

 Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

 Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

 Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

 Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

 As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

 Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

 Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

 Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

 Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

 Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

 Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

 Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

 Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

 Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

 Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

 — O que foi?! gritou vibrando toda.

 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

 — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

 — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

 Acabara-se a vertigem de bondade.

 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


- Conto solicitado no vestibular da UNICAMP
Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
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E agora, José? - análise do poema "José", de Carlos Drummond de Andrade

 José
1
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
2
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
3
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
4
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
5

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
6
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”

(Carlos Drummond de Andrade)

Análise - parte 1

- por Oriza Martins



O poema "José", de Carlos Drummond de Andrade, foi publicado em 1942.

Trata-se de um poema modernista, com liberdade de rimas, linguagem coloquial, cenários da vida cotidiana, uso de regionalismos e é farto em linguagem figurada para exprimir temas da situação-limite em que se encontra eu-lírico :da solidão, do abandono, da impossibilidade, da impotência, do desencanto, da angústia, uma luta travada interiormente contra a visão pessimista do porvir, ou seja, um verdadeiro conflito existencial.

O próprio Drummond, em cartas e entrevistas, nos fala sobre essa crise existencial.
Em uma entrevista a sua filha, o poeta admitiu que "José é um poema de explosão, é o poema de um suicida que não se suicidou". 

Em uma carta a um amigo historiador , mineiro como o poeta,  Drummond explica que escreveu o poema José num "momento de crise existencial em que queria fugir de tudo e de todos e não voltar fisicamente para Minas Gerais". 


Para entendermos melhor o poema José, é importante uma reflexão sobre o contexto em que a obra foi escrita, é importante conhecermos a época em que o poema foi lançado: ano de 1942.

Em 1942, a Segunda Guerra Mundial encontrava-se no auge, com amplo poderio das forças do Eixo, comandadas pelo tripé: Alemanha nazista / Itália fascista / Japão imperialista.

A batalha de Stalingrado - cuja vitória soviética significou a mudança do pêndulo em favor dos Aliados no fronte leste -, só ocorreria no final do ano de 1942; no fronte do Pacífico, os EUA que haviam acabado de entrar na guerra (dezembro/1941), ainda tentavam se organizar para a luta de fato. 

A primeira vitória americana sobre os japoneses, em Midway, aconteceria somente em junho de 1942, como um sinal de esperança de que os Aliados poderiam vencer o conflito, mas num futuro imprevisível, distante.

Ou seja: os rumos da guerra ainda estavam indefinidos, o mundo mergulhado na incerteza, no prenúncio do caos, vislumbrando um  cenário que poderia vir a se tornar catastrófico para a humanidade.

Isso tudo acontecia no contexto internacional, e nesse contexto, surge o poema "José", de Carlos Drummond de Andrade, com um agravante: como se não bastasse tudo o que ocorria no cenário internacional, aqui no Brasil o país era governado por uma ditadura - a ditadura Vargas, que flertava com o nazismo, que vacilou muito e quase levou o país a lutar no lado errado da guerra.

E Drummond, como se sabe, era um homem de ideais, progressista, de esquerda. Então, imaginem como se sentia o poeta vivenciando aqueles tempos.
Diante de um cenário desses, tínhamos o mundo em desencanto, o Brasil em desencanto, e o homem em desencanto.

Esta era a pergunta cotidiana que todos os que ansiavam pela paz se faziam: E agora? E agora, José? Para onde caminhas? Para onde caminha a humanidade?
E o eu-poético, o eu-lírico, diante das contingências históricas e de suas próprias inquietações pessoais, questionava o outro e se questionava: E agora, José? E questionava o leitor: E agora, você?

Então, uma interpretação possível para o personagem "José" é a de que ele significa não apenas o próprio poeta, mas cada um de nós, ou todos nós, em conjunto, ou seja, toda a humanidade, valendo-se o eu-lírico, neste caso, da linguagem figurada - a metonímia, a parte pelo todo: o indivíduo pelo coletivo, o ser individual pelo ser universal, a unidade pela diversidade.

Quem é, então, o personagem José? O nome escolhido - José - o mais utilizado da língua portuguesa - aplica-se, no poema, ao ser humano comum. Ele representa a unidade na diversidade: um homem (unidade) significando as várias possibilidades de homens, gente que ama, que zomba, que faz versos, que protesta, que sofre, que luta (diversidade).
1a. estrofe:
"você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?"

E como se caracterizaria o poema José? "José" é um poema lírico? É poema de cunho social? José tem características líricas? Sim, são evidentes.
José é um poema de expressão social? Também, sim.
Sim, é lírico no sentido de que apresenta referências líricas - aspectos subjetivos, que remetem o eu-poético, o eu-lírico, ao próprio poeta Drummond em suas vivências e angústias.

É um poema social enquanto veicula aspectos que, embora frutos de um contexto histórico, remetem ao homem no sentido universal, com suas preocupações cotidianas, sua luta pela sobrevivência, as necessidades emocionais e inquietações metafísicas.


Vejamos então como se apresentam os Aspectos líricos no poema:
- José faz versos
José, além das características comuns a todos os humanos, ama, protesta, faz versos, tem uma biblioteca, sugerindo que a abordagem dessa personagem inclui o poeta.

- Minas Gerais está presente no poema:
José parece ser mineiro, pois há referências a Minas Gerais no poema, como sugere a 4a. estrofe:
"quer ir para Minas,
Minas não há mais."

Sabe-se que Drummond era mineiro da cidade de Itabira.  E o próprio Drummond fala sobre o poema e o significado de ser mineiro para ele, numa entrevista a sua filha. Vamos ver e ouvir a gravação pelo poeta (acessando o vídeo):
"O que é José, por exemplo, José é um poema de explosão, é o poema de um suicida que não se suicidou e que conseguiu... através de José, fui reprovado [...] Afonso Arinos achou José um poema errado, porque eu falava que Minas  não havia mais... Minas não havia mais para mim e naquele momento; Minas há em mim, de uma maneira... assim... imponderável mas é profunda, porque sou mineiro e se há uma coisa na vida é que eu sou é mineiro, não sou brasileiro, sou mineiro. Aquele era um momento de desespero porque eu não tinha nada, não tinha Minas Gerais, não tinha nem um apoio, nem um cavalo pra fugir, e essa imagem do cavalo é natural numa pessoa que era filha de fazendeiros e para a qual a ideia de ter um cavalo arriado à sua porta é muito importante, porque o cavalo dá uma ideia de liberdade, de uma ideia de expansão, que eu não tinha em mim, aliás, eu [...] andar a cavalo; então, o poema valeu para mim como exorcismo; agora, depois, então, eu já não sinto a necessidade de exorcismo."


Segundo o próprio Drummond, portanto, o poema reflete um momento em que o poeta passava por uma situação-limite, uma crise existencial.

Outra referência a Minas Gerais é a lavra de ouro (3a. estrofe) - que, como figura de linguagem, tanto pode significar riqueza, bens materiais como o próprio trabalho, o ofício ou emprego de José, pois uma lavra, em Minas, é um pedaço de terra de onde o minerador tenta retirar seu sustento.

Ainda sobre sua vivência no interior mineiro: o poeta  evoca, na estrofe final os regionalismos do interior de Minas - bicho do mato, o hábito de se deixar um cavalo arreado à porta de casa para saídas de emergência.

- Outra característica lírica é a referência à utopia (2a. estrofe). Quando fala em utopia ("não veio a utopia") - Drummond nos dá outra mostra de seu lirismo, pois ele nutria esperança por ideais progressistas,  de uma esquerda utópica, mas, na prática, na existência, mostrou-se decepcionado com o partido comunista com o qual ele mantinha relações.

- A referência à teogonia (6a. estrofe) também é um indício do subjetivismo do poeta. Teogonia é um conceito ligado à criação dos deuses.  Drummond tinha uma relação instigante com a ideia de Deus. Embora tivesse sido criado na religião católica, para ser - como o poeta mesmo dizia -, "temente a Deus", ele se questionava:  Se Deus criou o mundo, quem criou Deus?  Esse é um questionamento existencialista.

     Para o existencialista, as soluções de seus conflitos resultam de suas próprias lutas, não de soluções mágicas, advindas de poderes divinos. No existencialismo, a existência precede a essência; o concreto precede o abstrato, não é um deus que gera o homem, mas o homem que gera seus deuses. No poema, não houve teogonia para José, nenhuma geração de divindades para socorrê-lo, nenhuma intervenção mística no seu momento de desespero, como seria comum entre homens de fé - que inclusive não era exatamente esse o perfil de Drummond, pois o poeta preferia definir-se como agnóstico.




Retomando, então, as características gerais do poema:

"José" é um poema modernista composto por seis estrofes com número variado de versos, em forma de redondilha menor, de cinco sílabas ou pentassílabos, versos brancos, sem preocupação com rimas. A redondilha menor agiliza a leitura, confere ao poema uma atmosfera de agitação, de turbilhão, de pressa, de urgência para a solução da situação-limite em que se encontra o eu-lírico.

A pergunta-chave (E agora?), repetida várias vezes, inicia o poema e já se tornou um refrão no imaginário do leitor. Ela aparece nas quatro primeiras estrofes quando o eu-lírico se dá conta de sua carência, de sua solidão, diagnosticando a situação e está "caindo na real", como se diz popularmente.

A partir da terceira estrofe o eu-lírico inicia o processo de busca da resposta à indagação (E agora?), quando esta é colocada pela última vez no poema. 

Nas duas últimas estrofes já não acontece mais a pergunta porque o eu-lírico encontra-se, então, numa busca frenética para encontrar uma resposta à sua pergunta, uma saída aquela situação-limite.



Ficamos, então,  por aqui com a primeira parte da análise do poema, onde foram elencadas as características gerais.
Na segunda parte, vamos proceder à análise de cada estrofe e verificaremos se o eu-lírico conseguiu ou não uma resposta à sua indagação: E agora, José?

- Oriza Martins - portal Galera Dez



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